sábado, 1 de março de 2008

dramáticos

"Começou com a simplicidade da rotina. O doutor Juvenal Urbino tinha voltado ao quarto, nos tempos em que ainda tomava banho sem ajuda, e começou a se vestir sem acender a luz. Ela estava como sempre a essa hora em seu morno estado fetal, os olhos fechados, a respiração tênue, e aquele braço de dança sagrada sobre a cabeça. Mas estava meio desperta, como sempre, e ele estava sabendo. Depois de longos rumores de linhos engomados na escuridão, o doutor Urbino falou consigo mesmo:
– Faz uma semana que estou tomando banho sem sabonete – disse.

Então ela acabou de acordar, lembrou, e rolou de raiva contra o mundo, porque na verdade tinha esquecido de substituir o sabonete do banheiro. Tinha notado a falta três dia antes, quando já estava debaixo do chuveiro, e pensou em botar o sabonete depois, mas esqueceu o assunto até o dia seguinte. No terceiro dia tinha acontecido o mesmo. Para dizer a verdade, não tinha se passado uma semana, como ele dizia para lhe agravar a culpa, e sim três dias imperdoáveis, e a fúria de ser apanhada em falta acabou de enraivecê-la. Como de costume, se defendeu atacando.
– Pois tenho tomado banho todo santo dia – gritou fora de si – e sempre tem havido sabonete.

Embora ele conhecesse de sobra seus métodos de guerra, desta vez não pôde suportá-los. Foi morar a um pretexto profissional nos quartos de internos do Hospital da Misericórdia, e só aparecia em casa para trocar de roupa ao entardecer antes das consultas a domicílio. Ela ia para a cozinha quando o ouvia chegar, fingindo qualquer afazer, e ali permanecia até escutar vindos da rua os passos dos cavalos do carro. Cada vez que procuraram resolvera discórdia nos três meses seguintes, só conseguiam atiçá-la. Ele não dispunha a voltar enquanto ela não admitisse que não havia sabonete no banheiro, e ela não se dispunha a recebê-lo enquanto ele não reconhecesse ter mentido de propósito para atormentá-la.

É claro que o incidente lhes deu a oportunidade de evocar outros arrufos minúsculos de outras tantas manhãs perturbadas. Uns ressentimentos mexeram em outros, reabriram cicatrizes antigas, transformaram-nas em feridas novas, e ambos se assustaram com a comprovação desoladora de que em tantos anos de luta conjugal não tinham feito mais do que pastorear rancores. Ele chegou a propor que se submetessem juntos a uma confissão aberta, com o senhor arcebispo se fosse preciso, para que Deus decidisse como árbitro final se havia ou não sabonete na saboneteira do banheiro. Então ela, que tão boas estribeiras tinha, perdeu-se num grito histórico:
– Que vá à merda o senhor arcebispo!

O impropério abalou os alicerces da cidade, deu origem a cochichos que não foi fácil desmentir, e ficou incorporado à fala popular com ares de teatro de revista: “Que vá à merda o senhor arcebispo!” Consciente de que havia ultrapassados os limites, ela se antecipou à reação que esperava do esposo, e ameaçou mudar-se para a antiga casa do pai, que continuava sua embora estivesse alugada para escritórios do serviço público. Não era uma bravata: queria ir embora de verdade, sem se importar com o escândalo social, e o marido percebeu a tempo. Não teve coragem para enfrentar seus próprios preconceitos: cedeu. Não no sentido de admitir que havia sabonete no banheiro, pois tria sido um insulto à verdade, e sim no de continuarem morando na mesma casa, mas em quartos separados e sem se dirigirem a palavra. Assim faziam as refeições, contornando a situação com tanta habilidade que se mandavam recados pelos filhos de um ao outro lado da mesa sem que estes percebessem que os pais não se falavam.

Como no escritório não havia banheiro, a fórmula resolveu o conflito dos ruídos matinais, porque ele tomava banho depois de preparar a aula e adotava precauções reais para não acordar a esposa. Muitas vezes coincidiam e se alternavam para escovar os dentes antes de dormir. Ao fim de quatro meses, ele se deitou para ler na cama matrimonial enquanto ela não saía do banho, e pegou no sono. Ela se deitou ao seu lado sem quaisquer precauções, para que ele acordasse e fosse embora. Ele acordou pela metade, com efeito, mas em vez de se levantar apagou a lâmpada da cabeceira e se acomodou no travesseiro. Ela o sacudiu pelo ombro, para lhe lembrar de que devia ir para o escritório, mas ele se sentia tão bem outra vez na cama de penas dos bisavós que preferiu capitular.
– Me deixa ficar aqui – disse. – Tinha sabonete, sim."

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