quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

no nada


"Olhei para o lado da balsa onde anotava os dias e contei oito riscos. Mas me lembrei de que não tinha anotado o daquele dia. Marquei-o com as chaves, convencido de que seria o último, e senti desespero e raiva ante a certeza de que era mais difícil morrer que continuar vivendo. Nessa manhã tinha decidido entre a vida e morte. Escolhera a morte e, entretanto, continuava vivo, com o pedaço de remo na mão, disposto a continuar lutando pela vida. A continuar lutando pela única coisa que já não importava mais."

"É possível se passar um ano no mar, mas há um dia em que é impossível suportar uma hora mais."

Relato de um Náufrago - Gabriel García Márquez sem firula, seco como sal. Melhor na edição de sebo com ilustrações do Carybé

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

"história de um amor"


Trechos de Carta a D., de André Gorz, uma declaração a sua mulher, Dorine, em carta, em livro, em fim da vida:

"Procurei esse médico quando seu estado de saúde se agravou dramaticamente. Você não conseguia mais se deitar, de tanto que a cabeça a fazia sofrer. Passava a noite em pé, na varanda, ou sentada numa poltrona. Eu queria acreditar que nós tínhamos tudo em comum, mas você estava sozinha na sua aflição."



"Você acabou de fazer oitenta e dois anos. Continua bela, graciosa e desejável. Faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. Recentemente, eu me apaixonei por você mais uma vez, e sinto em mim, de novo, um vazio devorador, que só o seu corpo estreitado contra o meu pode preencher. À noite eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atrás de um carro fúnebre. Eu sou esse homem."

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

feio mas tá na moda

Do alto de uma falésia, desceu rumo à praia por uma escada íngreme de madeira. Era uma praia estreita de comprimento, mas com uma bela faixa de areia. Seu destino era a caverna semelhante a uma torre no lado direito da praia.

Entrou e começou a subir. As rochas eram todas ornamentadas com grafites de motivos de futebol, com referências a craques e campeonatos do passado. No caminho inverso, atletas altos, de uniforme azul e amarelo, desciam compenetrados. No alto da caverna, pegou o que tinha que pegar, sem saber direito o que era, e desceu de volta.

À noite, sob o galpão onde se realizava a festa do que parecia ser uma colônia de férias, o time dos atletas altos e fortes voltou, agora em grupo. Formaram um corredor no meio do galpão, à espera de seu técnico, que chegou pouco depois. Ele era negro e não era alto como seus discípulos, mas era forte e assustador. O rosto coberto de piercings na sobrancelha, um grande brinco de argola em uma orelha, e dentes enormes. Bradou as palavras de sempre de ordem, união, força, vitória, aos gritos de seus soldados.

Em seguida, o capitão do time, ao que parecia ser, cumprimenta de longe, com um aceno discreto, e inicia o que devia ser um show de demonstração/teste para a próxima leva de calouros do próximo ano. Dois meninos fortes, mas não tão altos como os veteranos, são os primeiros candidatos. Eles se amarram a cordas presas ao teto e a duas grandes portas de metal, que deveriam ser erguidas paralelamente ao solo.

Os jovens apoiam os pés na porta, perpendicularmente ao chão, e tentam começar a andar em direção ao teto com a ajuda da corda. O esforço é visivelmente marcante, com veias saltadas e rostos vermelhos e pingos de suor. Um deles não aguenta, desaba no chão e ali fica, com uma estranha pulsação na testa, um galo que inchava e desinchava, deformando seu rosto.

A cena chama atenção de todos, os moleques que soltavam gritos de provocação ao time de jovens muito mais bem nutridos que eles se calam. Um dos jogadores vai checar o que houve, quando o candidato fracassado, de repente, se transforma em um grande lobo, o suficiente para causar tumulto e acabar com a festa.

Correu, perseguiu, uivou, mas não atacou ninguém. Você consegue se desvencilhar quando ele vem em sua direção, mas o deixa chegar perto a ponto de ameaçar: não acabou aqui, guardei seu rosto, volto para te buscar.

Mais tarde, na internet, cria coragem para provocá-lo de volta: então vem.

domingo, 21 de novembro de 2010

oi de novo

Trechos de Adeus às Armas, de Ernest Hemingway. soco no coração com estilhaços de granada e paixão interrompida.

Terminadas as tarefas, sentávamo-nas na sacada do meu quarto. Eu ia para a cama e, depois que todos já estavam dormindo e tínhamos certeza de que ninguém nos viria interromper, Cat se aninhava comigo. Eu gostava de desmanchar seus cabelos; ela sentava-se na cama e ficava imóvel; então, de repente, me beijava e eu tirava-lhe os grampos e os espalhava sobre o lençol. Eu pararia para observá-la, e ela não se mexeria até eu desprender os dois últimos grampos, quando os cabelos ficariam inteiramente soltos. A seguir, enfiava a cabeça por entre eles, e ela também, e ficávamos como se dentro de uma tenda, ou como se estivéssemos por trás de uma cachoeira.

* * *
- Sim - disse eu. - O estômago não pode ganhar uma guerra, mas pode perdê-la.
- Não falo em perder. Não concordo com o que dizem por aí. O que fizemos neste verão não foi inútil.

Calei-me. Eu sempre me embaraçava com as palavras sagrado, glorioso e inútil. Nós as tínhamos escutado muitas vezes, de longe, debaixo da chuva, quando só as palavras mais gritadas eram ouvidas, e as tínhamos lido em proclamas pregados nas paredes, sobre outros proclamas. Mas não víamos nada sagrado em torno, e as coisas gloriosas não mostravam glória nenhuma. Os sacrifícios seriam como os dos matadouros de Chicago, só que lá fazem outra coisa com a carne que, aqui, enterramos. Havia muitas palavras que já não suportávamos - e por fim só os nomes dos lugares tinham dignidade. Certos números, nomes e datas eram tudo o que poderíamos pronunciar com alguma significação. Palavras abstratas, como glória, honra, coragem, sagrado, eram obscenas, ao lado dos nomes concretos das cidades e rios, dos números dos regimentos e das datas.

* * *
Aos que trazem coragem a este mundo, o mundo precisa quebrá-los, para conseguir eliminá-los, e é o que faz. O mundo os quebra, a todos; no entanto, muitos deles tornam-se mais fortes, justamente no ponto onde foram quebrados. Mas aos que não se deixam quebrar, o mundo os mata. Mata os muito bons, os muito meigos, os muito bravos - indiferentemente. Se vocês não estão em nenhuma dessas categorias, o mundo vai matar vocês, do mesmo modo. Apenas não terá pressa em fazer isso.

* * *
O garçom saiu e fechou a porta. Voltei aos jornais e à guerra nos jornais, enquanto ia lentamente despejando a soda no uísque. Ia ter de dizer a eles para não trazerem o uísque já com o gelo, no copo, pois só assim dá para ver quanto uísque é servido, e também o copo não estará cheio demais para se misturar a soda. Era o mais sensato a fazer. O bom uísque é das partes agradáveis da vida.
- Em que está pensando, querido?
- Em uísque.
- E o que pensa sobre o uísque?
- Em como é bom.
- Sei - murmurou Catherine, fazendo uma careta.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

receptáculo

Acordou de uma bebedeira. Mais uma amnésia alcoólica. Merda. Onde estava? Era um quarto de hotel. Pela janela, reconheceu os grafites, a fauna humana e a sujeira hipster da rua Augusta. Ao tentar recuperar um pouco de dignidade com a água da pia na cara, tomou um susto ao ver um corte tosco, ainda em processo de cicatrização, dando a volta na cabeça, logo abaixo da franja. Achou um pininho, desses de caixa de joia de avó, e abriu, como se não ligasse que sua cabeça, da noite para o dia, virou caixa de joia de avó.

Não havia nada. Seu cérebro havia sido removido. O crânio era um recipiente quase vazio agora.

Sem se desesperar com o absurdo, grotesco, horripilante desfecho da noite, questionou-se, com calma de coveiro em dias de chuva: por que eu mantenho as funções motoras se não tenho mais cérebro?, perguntou-se.

AO descer à rua, encontrou outros amigos de porre. Um deles passou pelo mesmo procedimento cirúrgico aparentemente não consentido. Discutiram a respeito das supostas vantagens biológicas que haviam descoberto, mas um terceiro interveio: vocês estào exercendo funções de piloto automático. Vocês mantiveram o lobo parietal, então vejam: ainda conseguem manter sensações...

Ah, cala essa boca, olha aqui, maluco, dá pra servir sopa com minha cabeça e você vem com essa aulinha de biologia!?

Mas é sério. Quando vocês precisarem pensar, ter uma ideia no trabalho, por exemplo, não vão conseguir. Vejam aquela modelo andando. Ela também teve o cérebro removido. Mas vai ter um dia a dia normal.

Hmmm

Ao chegar no trabalho, concluiu todas as tarefas sem o menor problema.

Pediu demissão no dia seguinte.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

a mulher do próximo passo


Ele corria, sem esforço, num dia ensolarado, pela avenida. Larga, 4 pistas de cada lado, toda dedicada aos atletas de fim de semana. Os prédios dos anos 60 e seus oito, dez andares, sobre árvores verdes e gordas eram testemunhas de sua visão hipnótica: uma mulher alta, longos cabelos ondulados cor de mel, corria à sua frente vestindo apenas uma camiseta de corrida e tênis. Nua, na prática.

A visão daquela bunda empinada, linda, pornograficamente romântica, era a tentação no auge do auge. De repente, sentiu que ela, a bunda, os lábios, o chamavam. Estava bêbado, óbvio. Mas não, por incrível que parecesse estava praticando esportes, brincando de ser saudável, suando um suor sem o cheiro acre de véspera eufórica.

Acelerou o passo e a alcançou. Reconheceu-a, era uma nova namorada, modelo nas horas vagas, um palmo mais alta que ele. Linda com aquele curioso cabelo diferente do resto. Correram, felizes no trote, pegaram um desvio até a casa dos avós dele. Haveria uma festa. Vamos ajudar na preparação e pegar um cantinho para nos agarrar, sugeriu.

Ela adorou. Ao chegarem, um vai-e-vem de pessoas com bandejas, cadeiras, copos, pratos. Subiram as escadas da sala de jantar que na infância só lhe eram permitidas em dia de festa. No meio do caminho, ele avistou uma tia-bisavó que não via havia muito. Frágil, pequena, viúva. Descendo passo a passo os degraus. Parou para cumprimentá-la e lhe dar passagem. A namorada, no degrau inferior, queixo encostado em seu ombro, mãos dadas perpendicularmente aos corpos.

Ao passar por ele, a tia ajustou os sapatos para descer com mais segurança. Sapatilha azul, tipo um calçado social de dançarinas de balé. Para seu espanto, girou 180º o sapato esquerdo, deixando os pés assim: um para frente, outro para trás - uma semicurupira. Sorriu para o jovem casal e desceu, firme, sem precisar de ajuda.

A velhice é torta.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

inner



Era uma garagem subterrânea, semelhante às de shopping. Escura, empoeirada e um balcão com luz amarela baixa, mostrando aos poucos pneus empilhados e uma tevezinha antiga, 14 polegadas, pendurada em um canto alto da parede. Surpreendeu-se ao reconhecê-la na tela, participando de uma gingana de perguntas e respostas ou algo do tipo no programa do Gugu. 'Caramba, para quem disse que não se sentia bem em frente às câmeras ela está ótima. E é o terceiro programa em que ela vai em 3 semanas!', mordeu-se, inseguro.

Saiu correndo pela garagem, que era repleta de elevadores rústicos para os pedestres passarem sobre as vias dedicadas exclusivamente aos milhares de carros que por lá passavam diariamente. Eram desses elevadores de obra, cetaligado?

Começou a correr. Não a correr desesperadamente ou fugindo de algo ou querendo chegar a algo. Correr por correr porque sentia-se bem ao correr como se fosse uma criatura que não andasse mas corresse. No entanto, o trote sincopado começava a ser interferido pelo fluxo cada vez maior de transeuntes na mão contrária. Marchas de soldados, policiais, atletas, sempre na direção contrária.

O caminho que levava os pedestres para fora da garagem virava uma enorme estrutura metálica de pontes estreitas, suspensas e interligadas por escadas. Mais ou menos uma espiral cúbica de escadas de incêndio de grandes edifícios.

Foi numa dessas escadas que deu de cara com um antigo colega de faculdade, de quem não era muito amigo mas alguém longe de ser um desafeto. Cumprimentaram-se, ofegantes, ambos praticando a corridinha das escadas, mas em sentidos contrários. Sentiu-se diminuído quando foi perguntado: `Desculpa, não lembro seu nome...Não é...` `Não, esse é meu apelido`, cortou, sem graça. Despediram-se e ele voltou a se locomover.

Encontrou uma escada que subia à direita para uma casa que lhe era familiar - e que estava com sons de gente feliz. Subiu e deu de cara com uma colega que não via havia alguns meses vomitando sobre o irmão dele. Desses jatos beges, como se a boca dela tivesse sido trocada por uma mangueira de bombeiro. Ao ver a cena, ainda eufórico com a corrida, dirigiu-se à cozinha, onde uma empregada lhe apresentou diversos tipos de balde - que ela não chamava de 'balde`, por ser de algum lugar do Sul, e que não pareciam ser o que para ele eram baldes. Mas serviam para o propósito de encher de água e limpar o irmão humilhado pela tequila rebelde do estômago alheio.

Mandou que tirasse a camisa e jogou cuidadosamente água sobre o rosto dele até que estivesse suficientemente menos sujo. Feito o serviço, sentou-se e tratou de tentar se divertir com aquela reunião única de pessoas que até então não se conheciam. O som que tocava era um cd gravado por ele mesmo havia uns 2 ou 3 anos, embora não se lembrasse de ter colocado algo tão pesado com o Rob Zombie que explodia nas caixas de som. A dona da casa, ainda de luto pela morte do pai, estava a um canto, visivelmente forçada a tentar se divertir. Não queria estar ali. Ao lado dele, o colega surdo falou algo que ninguém entendera - ou que não era para ser entendido, o que foi comprovado quando ele forçara o surdo a repetir claramente o que dissera, para que todos ouvissem, o que foi só mais um momento constrangedor. Inocentemente, o surdo tentara se comunicar com os lábios com um amigo do outro lado da sala, fazendo uma fofoca sobre o antigo negócio do pai de outro ali presente, que havia falido e deixado a família endividada. Ninguém precisava ouvir isso.

E foi justamente nesse anticlímax que ele finalmente reparou que ela estava lá, sentada, divertindo-se, mexendo na mão vestida com uma luva de couro que deixava os dedos expostos. O jeito boneca roqueira dela de sempre. Só não era de sempre a proximidade que ela estava de um colega de trabalho dele, que rapidamente a envolveu com os braços apoiados no cotovelo, passando por trás da cintura e pegando a mão dela.

Foi o suficiente para ele se levantar. Quando se beijaram, a festa ainda continuava quase que normalmente, mesmo com a reação dele. `Vocês não iam me dizer? E precisava disso na minha frente?` Em meio a respostas evasivas, acabou quebrando na mão o copo americano vazio que segurava. Com o punho sangrando, saiu pela porta da frente, onde não havia mais as escadas metálicas, mas bucólicas ruas residenciais. Seu pai, preocupado, viera atrás, e lhe disse: 'vai pra casa e começa uma vida nova às 8h30`. Olhou para trás e viu, lá em cima, o irmão com uma espingarda apontada para os dois. Teve tempo apenas para dizer ao pai que se protegesse e saiu correndo.

* * *
Atendeu o telefone, pendurado na parede. Discutiu, gritou, xingou. Ao desligar o aparelho, esmurrou-o na parede até não sobrar uma peça intacta. O vizinho, ou algo semelhante a isso, soltava berros abafados pela parede. Hank xingou de volta, saiu chutando a porta.

A escada dava para um sótão trancado, de onde o tal vizinho reclamara do barulho do telefonema violento. Sujeito grande, costeletas selvagens, possivelmente um esquimó albino, escondia-se naquele buraco com uma velha misteriosa e uma pessoa quieta. Ao parar de xingar Hank, voltou-se para a velha, que conseguira uma presa em sua arapuca. Uma galinha lutava desesperada para soltar a cabeça das tábuas de madeira que faziam as vezes de parede e portão para eles, e por através de suas frestas entrava a pouquíssima luz de que essas estranhas pessoas dispunham (talvez era o necessário para eles, seu aspecto indicava que sim).

`Temos jantar para hoje`, disse a velha ao quebrar o pescoço da ave.

* * *
De volta ao trabalho, narrou aos amigos a cena que tivera que presenciar na véspera. "Talvez você tenha se exaltado à toa. Eles estavam encenando, é possível por isso, isso e isso", ouviu. "Mas eles fizeram aquilo, aquilo e aquilo", retrucou. "Mas tudo se encaixa. Você pode estar errado."

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

o futuro dos jornais

Trecho do gigantesco e rebuscado e filosoficamente arrastado A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Aqui, ele escreve sobre consciência ecológica e o papel econômico que o jornal, mais especificamente do papel-jornal, poderia ter. O ano? 1924.

"Em consequência de seu caráter complacente, o bom Hans Castorp estava predestinado a receber as confidências de vários dos seus companheiros que se achavam possuídos de alguma ideia fica e sofriam por não encontrar na maioria leviana dos pensionistas pessoas que os quisessem ouvir. Um antigo escultor, natural de uma província da Áustria, homem de certa idade, com um bigode branco, nariz adunco e olhos azuis, concebera um projeto político-financeiro, que caligrafara, sublinhando os trechos decisivos com pinceladas de tinta nanquim. Esse projeto tinha o seguinte objetivo: cada assinante de jornal deveria ser obrigado a entregar no primeiro dia de cada mês uma quantidade de papel de jornal velho que correspondesse a 40 gramas por dia. Isso importaria anualmente em cerca de 1400 gramas, e em 20 anos em nada menos que 288 quilos, os quais, à base de um preço de 20 pfennings por quilo, representariam um valor de 57,60 marcos. Cinco milhões de assinantes - assim prosseguia o memorando - entregariam, portanto, em vinte anos a soma formidável de 288 milhões de marcos, dois terços da qual poderiam ser deduzidos das assinaturas, ao passo que o resto, aproximadamente cem milhões de marcos, seriam aproveitados para fins humanitários, como, por exemplo, o financiamento de sanatórios populares para tísicos, subvenções para talentos, pobres etc. O plano estava elaborado em todos os pormenores. Não, tinha até mesmo uma coluna que permitia ao funcionário encarregado de recolher mensalmente o papel verificar a quantidade que faltava pela altura da pilha. Havia formulários pendurados para servir de recibo. Era um projeto sólido e fundado sob todos os aspectos. O gesto insensato e a destruição de papel jornal, que gente mal-avisada ainda desperdiçava em cloacas ou fogões, constituía alta traição às nossas florestas em um golpe contra a economia nacional. Poupar papel, guardar papel, significaria conservar e economizar celulose, árvores, máquinas, que a fabricação de pasta mecânica e de papel desgastava, como seriam também menos exigidos o capital e o material humano. Acrescia a isso o fato de o papel de jornal velho adquirir facilmente o quádruplo valor pela transformação em papel de embrulho ou em papelão, de maneira que seria capaz de se converter num fator econômico de vasta importância e em fundamento de rendosos impostos estaduais ou municipais, ao passo que os leitores de jornais veriam as suas contrubuições aliviadas. Numa palavra, o projeto era bom, era, em realidade, inatacável, e se no entanto tinha algo de sinistra ociosidade e mesmo de obscura tolice, era somente por causa do fanatismo excêntrico com que o ex-artista defendia e apregoava uma ideia econômica, exclusivamente esta e mais nenhuma, apesar de levá-la, evidentemente, tão pouco a sério no fundo do seu coração que não fazia a menor tentativa para realizá-la..."

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Ragtime, de E.L. Doctorow


Baita livro de bolso pra comprar. R$10 bem investidos numa narrativa sincopada entre frases longas e curtas (daí o nome, alusão ao estilo musical) que mostra, sob diversos aspectos e pontos de vista, a formação cultural dos Estados Unidos. Nada academicista. Jazz, anarquia e ilusionismo.


Sexo & casamento:
"O casamento parecia desabrochar com suas prolongadas ausências. Ao jantar, na véspera da partida, o punho da manga de Mamãe atirou ao chão uma colher e ela corou. Quando toda a casa estava adormecida, ele entrou no quarto da mulher, totalmente escuro, e foi solene e atencioso como cabia à ocasião. Mamãe fechou os olhos e levou a mão aos ouvidos. O suor do queixo de Papai caiu-lhe nos seios. Estremeceu, pensando: No entanto, sei que são estes os anos felizes. À nossa frente amontoam-se grandes desastres."

Gula:
"O augusto Pierpont Morgan consumia rotineiramente jantares de sete, oito pratos. Ao café-da-manhã comia bife, costeleta de porco, ovos, panquecas, peixe cozido, pãezinhos com manteiga, frutas secas e creme. O consumo de alimento era o sacramento do sucesso. O homem que ostentava um ventre volumoso encontrava-se no ápice da saúde. As mulheres internavam-se em hospitais onde morriam de ruptura da bexiga, falência do pulmão, coração sobrecarregado e meningite da medula espinhal. Havia muito movimento rumo às fontes sulfurosas, onde o purgativo era apreciado como um incentivo ao apetite. Toda a América era um grande arroto."

Raças:
"Mas o plano geral é o que permite aos taxonomistas classificar os mamíferos como tais. E dentro de uma espécie - a humana, por exemplo - as regras da natureza operam de modo que nossas diferenças individuais baseiam-se na nossa similaridade. Assim, a individualização pode ser comparada a uma pirâmide, no sentido de que só é alcançada graças à colocação da pedra mais alta.

Ford ponderou. Excetuando-se os judeus, murmurou. Morgan julgou não ter ouvido bem. Perdão, falou. Os judeus, repetiu Ford. São diferentes de todas as outras pessoas que eu conheço. E lá se vai sua teoria à merda. Sorriu."

Amizade infantil & diferenças sociais:
"Ela tinha pés pequenos, suas mãos morenas eram miúdas. Deixava marcas na areia de uma corredora de ruas, escaladora de sombrias escadas; sua pegada era uma fuga aos terrores dos becos e ao terrível estrondo das latas de lixo. Ela fizera as necessidades em privadas de madeira, por detrás dos cortiços. A cauda de roedores se enroscara em seus tornozelos. Sabia costurar à máquina e observava cães copulando, prostitutas recebendo fregueses nos corredores, bêbados urinando entre traves de madeira dos carrinhos de mão. Ele nunca passara sem uma refeição. Nunca sentira frio à noite. Corria com a mente. Corria em direção a alguma coisa. Era livre de medo e ignorava que houvesse no mundo seres menos curiosos que ele a respeito do universo. Via através dos objetos, observava as cores que as pessoas produziam e nunca se surpreendia com uma coincidência. Um planeta azul e verde movimentava-se nas suas pupilas."

quinta-feira, 17 de junho de 2010

temporada de caça

O destino era a Patagônia, a companhia, um livro. Mas o pai se ofereceu para acompanhá-lo. Foram juntos ao fim do mundo, alugaram um sobrado que lembrava a antiga casa dos avós. Por lá, coincidentemente, encontraram antigos amigos de colégio, que acabaram se hospedando também na casa, para repartir os gastos.

(...)

Já era o último dia. Da janela, só se via o movimento lânguido daquelas criaturinhas armando uma emboscada. Jacarés, dezenas deles apontados para entrar na casa. Subiu desesperado os lances de escada, avisou o pai, que prontamente acelerou o processo de fazer as malas, e alertou os amigos. Porém, eles não deram ouvidos, disseram que era mais uma paranoia, que não iriam mudar seus programas `pelos seus fricotes mais uma vez`. Pois bem, malas fechadas, sai logo, com cuidado, sorrateiro.

Conseguiram deixar a casa antes de os animais selvagens acabarem com tudo. Fizeram a coisa certa.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Gisele no país do espelho

No muro baixo branco de tijolos da antiga casa da avó, quadros, mantidos pelos tios herdeiros, lembram a opulência que o lugar tinha em outros tempos. A fotografia do velório de um alto membro da seleção de futebol, realizado no jardim, atestava como a residência era movimentada - embora enaltecesse algumas particularidades de decoração e paisagismo que não agradavam aos atuais donos.

`Olha essas paredes, essas plantas. Era tudo muito largado, se me permite a sinceridade`, dizia a nora e proprietária.

A visita se estendeu ao vizinho mais rico ao lado. No jardim, amigos pobres vivem amontoados, deslizando feito filhotes de porcos recém-nascidos sobre uma lona. A lona, por sua vez, era semelhante a uma vela de catamarã. Não, na verdade era uma vela.

Entre aquelas criaturas sujas e não mais dignas, havia um bebê sem olhos, cujas cavidades eram grossas, mas apesar do aspecto repugnante eram limpas e secas. O único traço de humanidade naquele rostinho deformado era uma pequena língua, tímida e pateticamente para fora, 'na pontinha'. O bebê era cuidado por um suposto irmão, gordo e atarracado, sem pescoço, com um semblante que seria divertido não fosse aquela situação tão embaraçosa. Você não tem coragem de perguntar nem se aquele bebê está vivo ou não. Eram todos tão alucinados que não espantaria um deles cuidar de um ser em decomposição.

Com muita dificuldade para superar o baixo atrito da lona sobre a grama e os arrepiantes contatos físicos daqueles que outrora eram amigos interessantes e vivazes, você consegue deixar o jardim e caminhar pelos lados da mansão até deixar o nobre bairro.

De volta ao trabalho, é interessante reparar, após tantos anos, como são felizardos os funcionários da empresa, que podem almoçar em um grande chalé de madeira encravado na entrada do bosque, servindo-se de diversas opções de pratos do chef, grelhados, supersaladas, cozinha brasileira, massas e pratos saudáveis. Seus pais sentiriam orgulho e tranquilidade ao ver que você é bem tratado na firma. Mas, sem fome, abre mão de tantas opções e escolhe uma gelatina com leite condensado, densa, branca e fosca. Tão densa que ela não escapa do prato quando o motorista do refeitório - de volta àquele insuportável ônibus escolar sob o pavimento - resolve transportar o enorme chalé bem na hora do almoço.

Enquanto nhoques e bifes a rolê pulam dos pratos para as camisas dos colegas, você é jogado para cima de uma cadeira encostada, e não consegue vencer a força gravitacional sem a ajuda de um amigo. Mais uma vez a gravidade atrapalhando, mas dessa vez os outros ajudam, não atrapalham.

Ao pesar a gelatina grudenta, um colega o aborda: "O que você estava fazendo com a Gisele ontem na rua!?"
Você gela. "Que Gisele?" Achando que ele se referia a uma conhecida deveras feia.
"Sabe muito bem que Gisele..." E olha, impaciente, aguardando o estalo.
"Ah, aquela, a Bundchen! Pois é, tive que ciceronear a moça, mas não deu muito certo"
"Por quê?"
"Porque ela é safa. E no sentido nada intessante. Nem para dar em cima rolava, né. Ia pegar mal"
"Pode crer."

sábado, 8 de maio de 2010

entropia

Foi lhe dar um beijo. Desses longos, de casais recém-apaixonados, ainda sem os traumas da convivência. Mas o beijo não acabou. Não porque eles não queriam (todo beijo acaba, afinal), mas porque, bizarramente, suas línguas eram uma só.

Não é força de expressão. Tampouco suas línguas deram nó, como os desenhos animados fazem crer. As línguas se fundiram em uma só, eram agora uma única faixa vermelha, que não sabia aonde ia nem de onde vinha. Um fiapo de carne vermelha que não cabia mais em seus corpos.

Angustiado, o casal não conseguiu se desvencilhar, claro, e, balbuciando entre salivadas, não se entendiam mais. Quanto mais desesperados ficavam ao tentar separar as línguas - ou melhor, transformar aquele único órgão em dois, como era antes, supõe-se - mais grudados ficavam.

Até que os lábios se juntaram. E, depois disso, se tornaram um único beiço. Não tinha mais volta. Logo o queixo, nariz, olhos, rosto se colaram. Era como um truque de espelho ou os primórdios dos efeitos digitais (tipo a irresistível textura de metal líquido do Exterminador do Futuro).

Não demorou mais que 30 segundos até que eles se transformassem em um só. E, por um instante, foram isso. Até que ele virou ela e ela virou ele. E não, isso não era bom, muito menos romântico. Porque era literal.

domingo, 21 de março de 2010

abraços pela américa

La Boca, Buenos Aires, novembro 2006


"E então, no meio daquele alvoroço, um desamparadozinho que não chegava a mais de um metro do chão mostrou-me um relógio desenhado com tinta negra em seu pulso:
- Quem mandou o relógio foi um tio meu, que mora em Lima - disse.
- E funciona direito? - perguntei.
- Atrasa um pouco - reconheceu."

"Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta."

"Enquanto passava a limpo nomes e endereços e telefones para a agenda nova, eu ia passando a limpo também o entrevero dos tempos e das gentes que acabava de viver, um turbilhão de alegrias e feridas, todas muito, sempre muito, e esse foi um longo duelo entre os mortos que mortos ficaram na zona morta do meu coração, e uma enorme, muito mais enorme celebração dos vivos que acendiam meu sangue e aumentavam meu coração sobrevivido. E não tinha nada de mais, nada de mal, que meu coração tivesse se quebrado, de tão usado."

"Somos todos mortais até o primeiro beijo e o segundo copo."

* * *

Eduardo Galeano, direto, espirituoso e deveras humano em O Livro dos Abraços. Obrigado, pelo presente, Zaizer!

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

noites na Louisiana


Era uma festa. Uma casa abandonada, sobrado de madeira, colonial, numa cidade do interior. Noite de verão, muita bebida, Lua amarela. Você está no sofá, já com a consciência em estado profundamente alterado. Repara nas luzes refletidas na parede.

- Cara, esses vultos...Tá vendo?
- Ahã...
- Na parede, se liga... Esse monte de cor...Parecem pessoas...
- Pode crer. Eles têm até uns rostos, olha...
- Caraca, é mesmo! Olha mais de perto...

Os dois já não dão mais bola para o que acontece naquela sala suja, grudenta e suada, que tem num sofá velho o único móvel disponível naquele momento. Estão a poucos centímetros da parede, procurando mais detalhes e, principalmente, de onde vinha aquela iluminação estroboscópica, psicodélica.

De perto, todas as pessoas são sombras na parede. Ao constatarem esse absurdo, vocês perceberam que as imagens se deslocam para debaixo do tapete. E somem.

O garçom maluco surge com sua bandeja cheia de pastilhas coloridas. Ele toma uma. E, na sua frente embasbacada, perde o peso, o volume, a massa, as saliências e reentrâncias do corpo. Não parte do peso, o peso. Ele simplesmente ficou 2D. E foi para a parede, numa excrescência cubista.

Você o segue, aquela imagem disforme verde fluorescente descendo vertiginosamente pelo chão. Levanta o tapete e, no mesmo instante, sente o corpo se comprimir - como se pudesse ser uma bola de papel e de repente virar uma folha plana - e vai parar embaixo daquele tecido bordado de qualquer coisa suja de cerveja. Lá, uma outra festa, na verdade, a pista mais disputada da mesma festa. Você reconhece várias pessoas, em transe, dançando a uma música indecifrável.

Os bombeiros chegam. Você deixa a casa pelo porão, que era onde essa pista insana estava, e vê dezenas de pessoas sendo removidas de maca para fora. Elas estão desacordadas, sim, mas parece haver um cortejo, que não é fúnebre, mas é solene, quase um ritual, do qual os bombeiros fazem parte. Sobem um morro, com ciprestes e pequenos arbustos no topo.

Quando você está chegando lá em cima, vê a euforia dos que desceram, e começa a correr. Delira ao atingir o topo, a vista sublime de um mar queimando. Corre, corre, corre, atira o copo de Coca-Cola para o alto e o vê caindo vagarosamente na grama, sem atingir ninguém, continua correndo, esticando as pernas ao limite, sentindo os músculos no limite, e mesmo assim sem alcançar a parte mais à frente do cortejo. Quando, de repente, tudo fica branco.

Sem entender nada, você se levanta, volta, e retoma a vida. O ano começou.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

putas tristes


"(...) Sin enbargo, también tenía a su lado un catre de soltero con los resortes bien aceitados para lo que le deparara de noche. En una época tuve una cierta tentación por sus costumbres de cazador furtivo, pero la vida me enseñó que es la forma más árida de la soledad, y sentí una gran compasión por él."

"(...) Después me levantó en vilo por los sobacos y me puso encima de ella al modo académico del misionero. El resto lo hizode su cuenta, hasta que me morí solo encima de ella, chapaleando en la sopa de cebollas de sus muslos de potranca."

"Conversamos durante horas de otros amigos vivos y muertos, de libros que nunca debieron ser escritos, de mujeres que nos olvidaron y no podíamos olvidar, de las playas idílicas del paraíso caribe de Tolú - donde el nació - y de los brujos infalibles y las desgracias bíblicas de Aracataca. De todo lo habido y lo debido, sin beber nada, sin respirar apenas y fumando hasta por los codos por miedo de que la vida no nos alcanzara para todo lo que todavía nos faltava por conversar."



Da autobiografia de Gabriel García Márquez, Vivir para Contarla, que ainda teve um instante para alfinetar A Montanha Mágica, livro que já está há quatro anos no criado-mudo, sem chegar ao fim (sim, um dia):

"Lo que todavía no me explico es él éxito atronador de La Montaña Mágica, de Thoman Mann, que requirió la intervención del rector para impedir que pasáramos la noche en vela esperando um beso de Hans Castorp y Clawdia Chauchat."

sábado, 20 de fevereiro de 2010

big brother oceania



comercial do Macintosh, da Apple, tipo um Big Brother de cara fofa e branca



"Debaixo da janela, alguém cantava. Winston espiou para fora, protegido pela cortina de musselina. O sol de junho ainda boiava alto nos céus, e no pátio ensolarado uma mulher monstruosa, sólida como uma pilastra normanda, com formidandos antebraços avermelhados e um avental de aniagem na cintura, caminhava entre uma tina de lavar e um varal, estendendo uma porção de panos quadrados em que Winston reconheceu fraldas. Sempre que não tinha a boca cheia de prendedores, cantava, com poderosa voz de contralto (...)"

"No sexto dia da Semana do Ódio, depois das passeatas, discursos, gritaria, cantoria, bandeiras, cartazes, filmes, esculturas em cera, rufar de tambores e guinchar de clarins, reboar de pés em marcha, ronco de esteiras de tanques, zumbido de aviões no ar, troar dos canhões - depois de seis dias de atividade, quando o grande orgasmo se aproximava trêmulo do clímax e o ódio geral contra a Eurásia se condensara em tamanho delírio que a multidão teria certamente esquartejado com as unhas os dois mil prisioneiros de guerra eurasianos cujo enforcamento público se realizaria no último dia - exatamente nesse momento, fora anunciado que a Oceania não estava em guerra com a Eurásia. Estava em guerra com a Lestásia. A Eurásia era aliada."

"- Faze comigo o que quiseres! - urrou - Há semanas que venho passando fome. Deixa-me morrer de fome. Fuzila-me, enforca-me. Condena-me a vinte e cinco anos. Alguém mais que queres que denuncie? Dize o nome e eu confesso imediatamente. Não me importa quem seja, nem o que faça com ele. Tenho mulher e três filhos. O mais velho ainda não tem seis anos. Podes pegar todos eles e degolá-los na minha frente, que eu olho sem virar a cabeça. Mas a sala 101, não!
- Sala 101."

Trechos de 1984, George Orwell


* * *
Pedras nos rins + este livro + GTA IV fizeram um bem danado para a perversidade dos meus sonhos nesse verão

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

no cinema

439 - cólica menstrual
440 - cólica renal (e no dia de Natal?)
441 - ter que abrir a carteira de novo pra mostrar a carteirinha e provar que é estudante na hora de entrar no cinema (mesmo a carteirinha sendo falsificada)
442 - cadeira muito na frente no cinema
443 - cadeira muito atrás no cinema
444 - um boneco de Olinda sentado na sua frente no cinema
445 - um casal adolescente se bulinando do seu lado no cinema
446 - um grupo de meninas rindo à toa no cinema
447 - pessoas que falam no volume "normal" de voz durante o filme (sim, tem que cochichar, no máximo)
448 - pessoas que fazem comentários óbvios ou reações estúpidas e exageradas ao longo do filme
449 - Argh! Gente que dialoga com o filme
450 - fulano que deixa o lixo na poltrona ao fim da sessão
451 - quem mantém a mastigação barulhenta num momento de silêncio do filme
454 - cinema de shopping pra ver um "filme de autor com considerável apelo comercial"
455 - cinema de rua pra ver "arrasa-quarteirão com toque especial do diretor"
456 - público de cinema de shopping, sempre
457 - público de cinema de rua, nas estreias
458 - corujões de cinema de rua
459 - cinéfilos
460 - fãs de cinema marginal
461 - quem acha que cinema pornô é algo menor cultura e industrialmente que, sei lá, Cinema Novo
462 - cinema de interior nas férias passando, invariavelmente, filme da Xuxa e do Didi
463 - preço de pipoca em cinema
464 - preço de ingresso inteiro na capital

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

inglórios

Era um mercado de pulgas, uma rinha de galos, um cinema pornô redundantemente decadente, um clube de boxe tailandês, uma taverna costeira de estivadores ou uma reunião de contrabandistas estereotipicamente tarantinados. Tudo escuro, empoeirado, iluminado apenas com algumas lâmpadas amarelas. De repente, uma batida.

Uma batida não, a batida, pois quem chegou foi o Brad Pitt e seus bastardos inglórios. "Ih, lá vêm os malas. Espero que sejam mais convincentes que no filme", resmunga um exigente cinéfilo ao lado, vendedor de cabeçotes de vídeo-cassete. Você meio que concorda, mas pensa que as atuações são boas, o problema é o roteiro.

Brad Pitt cala a sala com o toque-toque das botas no chão úmido. Começa a vasculhar com os olhos, ao mesmo tempo em que inicia uma perturbadora tortura psicológica acariciando rostos com seu bastão. Percebe-se que aqueles piratas mal encarados estão é com medo.

De repente ele dá meia-volta e caminha a passos largos em direção a uma mulher pequena e feia, tipo a vilã dos Goonies, com rugas que parecem acidentes geográficos cenozóicos. Ela tenta esconder uma grande sacola atrás das costas, mas é inútil. É afastada como algo sem valor, e do saco cai tudo que é tipo de quinquilharia.

Um discurso para fazer suar frio. Um homem enorme, peludo, 50 e tantos anos, se levanta. Assume a culpa. Acha que vai se dar bem. Brad Pitt acaricia seu rosto com o taco, mas o atira no chão. O gordão tem certeza que vai se dar bem.

Você assiste a tudo ansioso. Brad Pitt se vira e com a mesma boca torta que tem feito em todos seus últimos fimes pergunta: "May I...?"

Não havia legendas.

Ele aponta sua bengala, ao que você cortesmente a oferece. "Seria um prazer, senhor."

Prepara a bengala, olha para o gordão e desfere, sem cerimônia, um único e fatal golpe. Você percebe que poucos tiveram culhões para olhar a cena. A cabeça do homem se transforma em um grande feijão. Ou um rim inchado.

Delicadamente, Brad Pitt limpa a sua bengala, removendo os vestígios de sangue, ossos e miolos. Um de seus asseclas, que provavelmente adora a palavra 'assecla', espeta com um palitão um naco do cérebro do homem, desabado morto no meio do salão, e o retira dali.

E aí você percebe que o homem com a cabeça esmagada no chão era o Brad Pitt.

A primeira regra do Clube da Luta é "jamais fale sobre o Clube da Luta"

sossegados

Reunidos em um corredor, funcionários da revista masculina de prestígio mostram a última edição a você, que a folheia surpreso. O anão, sempre aquele anão zombeteiro e folgado da firma, passa e arranca a revista da sua mão. "Dessa vez não, filhodaputa!"

Agarra, aperta e pressiona a cabeça debaixo do tampo da carteira que havia ao lado. Soca, soca, soca e esmurra até a paree de 10 centímetros de madeirite se deformar com o formato de seus dedos, já suados, sangrados e inchados.

"Hihihihi. Otário"
"É, o cara gosta de zoar com sua cara mesmo" - dizem antigos colegas que por lá passavam.

O resto de força que ainda havia é multiplicado pela raiva irracional, pela insana vontade de ver sangue espirrar. O punho esquerdo quase se fecha nele mesmo tamanha a gana de esmurrar. Bater por bater. Não importava mais o motivo.

Meia-dúzia de golpes ligeiros e desesperados depois, a massa disforme em que se transformou a cabeça do anão é posta de lado. Revista recuperada e uma única preocupação:

"A câmera me pegou. Devo levar multa ou só uma repreensão? Saco."