quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Gênese

Choviam gotas grossas de lama e infelicidade naquele pedaço perdido de litoral. Tiago, o Antigo Pastor de Fêmeas, caminhava por entre ipês e amendoeiras (árvore que no outro lado da fronteira com os Assírios do Piratininga é chamada chapéu-de-Sol) com sua fiel labrador, chamada Tequila, quando avistou um grupo de navegantes visivelmente exaustos e perdidos.
- Digam-me vossos problemas, não lhes darei uma solução, quiçá um afago, viajantes!
- Pobre velho, deixa-nos. Sentimos náuseas, nossas cabeças parecem abóboras podres e inchadas, temos vassouras nos embrulhando as vísceras!
- Vós, que exagerastes sem parcimônia, que abusastes da boa vida que lhes fora dadas, mereceis o sofrimento a vós infligidos.
- E quem és tu, maracujá de pelos negros, para falar assim conosco?
- Eu sou a voz que não quer calar, aquele que veio lhes alertar do mal que acomete aqueles como vós.
- Um moralista politicamente correto?
- Talvez.
- Então faça-nos um favor, frango demente, suma de nossa frente, antes que botemos para fora todos os excessos depositados em nossos maltratados corpos.
- Pobres aqueles que abusam e sofrem, na crença de que a felicidade tem um preço.

Alheio aos comentários dos seus irmãos e amigos mais velhos, corrompidos pelo pecado e a lascívia, os três pequenos catadores de uvas Eduardo, Marcelo e Felipe ouviam os comentários daquele velho estranho. Na noite anterior, eles dormiam enquanto os quatro mais velhos comemoraram a chegada àquele pedaço perdido de litoral em um bordel inflamado de mulheres baratas e cervejas vagabundas e vice-versa.

- Sabem por que falhastes, viajantes?
- Bebemos sem comer antes, ó, senhor dono do Conhecimento Eterno!
- Falhastes a vida toda porque não tendes gratidão. Agora olhais o céu. O que há?
- É tudo cinza, é tudo triste, é tudo sem vida.
- Pois assim está desde que essa vila, nesse pedaço perdido de litoral, só olha o que não tem, só lamenta o que não existe, só chora pelo o que não há, só clama pelo o que não vem, só se lamuria pelo o que não está. Assim está há 40 anos e vós sois o tipo de gente deste lugar. Virarão pó com ela, pois daqui nunca sairão. Bem-vindos a Sagoma.
- Aqui não é Gozorra?
- Não. Gozorra foi engolida pelo vulcão. O oráculo diz que a próxima erupção deverá chegar àqui...
- Quando?
- Dentro de sete...
- Anos?
- Dias.
- Correto. Agradecemos a informação. Senhores, levantar âncora, pois que vomitem no mar!
- Não tens saída. Estava escrito nas estrelas que nunca vistes em vossa lamentável existência. Estais fadados a compartilhar o fim deste pedaço perdido de litoral.

E não falaram mais nada os navegantes. Seguiram calados à vila e se afogaram em todas as tavernas e todas as camas de todas as meretrizes de Sagoma. Após seis dias de orgias e depravações, os quatro viajantes - que haviam sido cavaleiros em outros tempos e outras paradas - sentiram dentro de si o maior de todos os ocos, aquele que suga cada sopro de ar e significado de suas efêmeras vidas. Uma sombra de depressão lhes varreu o brilho dos olhos, o vazio eterno da Grande Verdade, a Verdade Branca, abraçou suas pobres almas por trás, a tristeza maior do mundo brotava de cada falha das paredes beges e esfareladas, roubando o espaço que pertencia às ervas-daninhas. Não havia mais força ou vontade, nem nos viajantes nem em nenhum dos 166 habitantes da vila, para sequer esboçar uma reação frente à onda de lava e calor infernal que os engoliu e transformou em rocha o pouco que restava de vida naquela maldita vila.

* * *

Tiago, o Antigo Pastor de Fêmeas, observava, do alto do monte Mor, a fumaça negra e quente que subia dos restos daquele pedaço perdido de litoral.
- Venhais comigo. Tenho pouco tempo para ensinar-lhes o que deve ser passado àqueles iluminados. Um segredo ensinado pelo mestre de meu mestre, Camus de Aquário, e que lhe foi passado pelos outros lamas ao longo dos séculos.
- Olhais para cima.

Eduardo, Marcelo e Felipe obedeceram Tiago, o Antigo Pastor de Fêmeas, e viram, pela primeira vez em sua ainda imberbe adolescência, a mistura leve de vermelho, laranja, rosa, roxo, lilás, azul e amarelo que compunha a aurora de Valhala.
- Repitais comigo: Uuuulllçaaaaa
- Uuuulllçaaaaaaa!

Ao seguir os passos de Tiago, o Antigo Pastor de Fêmeas, os catadores de uvas sentiram o abraço suave de todo o céu. E sorriram, gratos como nunca pelo pouco que tinham e lhes era mais que suficiente para irradiar e compartilhar sua felicidade.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Sonhos bizarros (da semana) III

"Que diabos este retardado está fazendo com o paralelepípedo?
- Não sei, mas o cara é forte, o bagulho é do tamanho de um baú!
- Porra, ele vai jogar na gente!

POW (minhas onomatopéias são infantis até em sonhos tarantinescos. Foda-se, sou uma criança feliz), o cara atirou a pedra no capô do carro. Um estrondo, vidros trincados, arranhões, arrasou a nossa caixa-preta. Por quê? Sei lá, estávamos parando o carro, rumo à tradicional voltinha no centro de São Sebastião, depois da pizza de domingo à noite.

Pegamos os porretes e fomos para cima do cretino. Era pra ser um susto mas alguém errou a mão. Matamos o coitado.
- Vamos assumir ou vamos nos fazer de playboys cuzões?
- Somos playboys legais. Vamos assumir. Foi defesa, carro é mais importante que muita coisa neste país. Que esse otário aí, com certeza é.
- Então vamos nessa, duas semaninhas no xilindró.
- Uhu!

Desprovidos de culpa ou remorso, entramos em uma rua de paralelepípedo em que, de repente, as casas coloridas colonias brasileiras viraram cabanas enxaimel da Floresta Negra. Algum mala começou a discutir Lutero, tive que intrometer:
- De 95 em 95 teses a gente chegará na auto-religião e o individualismo virará dogma.
- É?
- É.
- Mamãe vai bem?

Mas o padre ciclope ouviu o que eu disse e se virou para falar. Na verdade, só vi que ele era um ciclope quando ele se virou, é claro. Um grande olho, na boca, não na testa. Não sei de onde saía sua voz, mas ele disse, em tons monocórdicos:
- Sim, você está certo, meu filho. Mas veja, O Segredo - The Secret é muito mais que ligar um sinal positivo na sua mente e esperar que tudo venha até você. O Segredo - The Secret é a fonte e, você, o torneiro mecânico.
- Correto.

A vila alemã se transformou em um Tetris 3D com linguagem meio Bomberman, meio Mario. Bichinhos fofos caím no abismo e voltavam mais felizes. Eu fiquei amigo deles.

E ficava olhando para ela. Ela que às vezes era ela, mas me confundia e se transformava em outra. E a outra era ela e eu não tinha as duas. Não sabia mais o que queria.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

sem saber

Os sapatos bicolores herdados do avô estavam sujos de pó e cinzas da cana, que naquela época do ano chegavam a encobrir o céu e sol de mil anos que tostava a vila. Os passos eram os mesmos dos tempos áureos, seguros, compassados e cheios de vida. Mas o Canalha, mesmo sem saber, estava ficando velho. Duas cores não cabiam mais em um sapato. Suíças estavam por fora. E o cabelo delineado milimetricamente para faturar todas as menininhas da praça então? Nem se fala.

O Canalha estava datado. Virou um holograma do passado, de um tempo que só ele achava que ainda existia.

Mas ele continuava a desfilar sua gola alta e seu desodorante de spray pela calçada amarelada. E, apesar de envelhecido, o Canalha continuava atraindo olhares fêmeos. Passou na sorveteria, escolheu o de abacaxi. Entrou na banca, pegou a revista da semana. Parou para limpar os óculos de aro dourado quando viu, na sua frente... Não, não a mulher da sua vida. Apenas um brechó.

Ao entrar, foi atendido por uma mulher do tempo dele, que não devia receber ninguém há pelo menos uma geração. Mas o jargão comerciário ainda falava mais alto:
- Essa daí tá saindo muito, né? Pessoal tá usando aí.
- Vou levar e quero também essas pulseiras grandes aqui.

O Canalha esboçou um sorriso, pagou os vinténs pelas pulseiras coloridas e a camisa de canalha que comprara e voltou satisfeito para casa - seu mundo ainda existia, seu guarda-roupas ainda estava cheio de camisas estampadas e desbotadas, correntes, pulseiras e anéis dourados e prateados, gel Gozzano e pentes finos (sim, ele guardava tudo no mesmo armário - o "armário do abatedouro", chamavam os puxa-sacos do Canalha).

No caminho de volta para casa, viu a Moça Bonita conversando com suas plantas no jardim. Era a única mulher da vila que via no Canalha algo além de um canalha. Mesmo assim, a Moça Bonita, que não é boba, nunca se meteu com ele. O Canalha, então, insistente como sempre, arrancou uns girassóis do jardim do Namoradão, um rapaz fiel a sua amada, mas um tanto bobo, e os deu junto com as pulseiras coloridas para a Moça Bonita.

Ela agradeceu
- Obrigada.

Mas disse que não podia sair com o Canalha
- Mas não posso sair com você.

Porque ele a magoaria
- Porque você me magoaria.

Sim, as palavras precisam ser repetidas. Porque o Canalha as martelou na cabeça o resto do dia.

Deixou a Moça Bonita conversando com as plantas em seu casebre vermelho e voltou para casa, consciente de que, agora sim, havia visto a mulher de sua vida (embora ele não saiba direito o que é isso e conheça apenas mulheres da vida). Caminhou ainda mais confiante, quase pedante, mas não deixava mais seu ego atrapalhar. "Ego é um animal que deve ser deixado em casa", ele ouvia de seus mestres da velha guarda.

Chegando em casa, Magau o esperava para a caça que eles haviam programado há muito. "Hoje é a desforra. Vão estar todas lá, você vai dar a volta no alfabeto e voltar esfolado para casa".

Mas o Canalha, embora achando que não, estava velho.