Os sapatos bicolores herdados do avô estavam sujos de pó e cinzas da cana, que naquela época do ano chegavam a encobrir o céu e sol de mil anos que tostava a vila. Os passos eram os mesmos dos tempos áureos, seguros, compassados e cheios de vida. Mas o Canalha, mesmo sem saber, estava ficando velho. Duas cores não cabiam mais em um sapato. Suíças estavam por fora. E o cabelo delineado milimetricamente para faturar todas as menininhas da praça então? Nem se fala.
O Canalha estava datado. Virou um holograma do passado, de um tempo que só ele achava que ainda existia.
Mas ele continuava a desfilar sua gola alta e seu desodorante de spray pela calçada amarelada. E, apesar de envelhecido, o Canalha continuava atraindo olhares fêmeos. Passou na sorveteria, escolheu o de abacaxi. Entrou na banca, pegou a revista da semana. Parou para limpar os óculos de aro dourado quando viu, na sua frente... Não, não a mulher da sua vida. Apenas um brechó.
Ao entrar, foi atendido por uma mulher do tempo dele, que não devia receber ninguém há pelo menos uma geração. Mas o jargão comerciário ainda falava mais alto:
- Essa daí tá saindo muito, né? Pessoal tá usando aí.
- Vou levar e quero também essas pulseiras grandes aqui.
O Canalha esboçou um sorriso, pagou os vinténs pelas pulseiras coloridas e a camisa de canalha que comprara e voltou satisfeito para casa - seu mundo ainda existia, seu guarda-roupas ainda estava cheio de camisas estampadas e desbotadas, correntes, pulseiras e anéis dourados e prateados, gel Gozzano e pentes finos (sim, ele guardava tudo no mesmo armário - o "armário do abatedouro", chamavam os puxa-sacos do Canalha).
No caminho de volta para casa, viu a Moça Bonita conversando com suas plantas no jardim. Era a única mulher da vila que via no Canalha algo além de um canalha. Mesmo assim, a Moça Bonita, que não é boba, nunca se meteu com ele. O Canalha, então, insistente como sempre, arrancou uns girassóis do jardim do Namoradão, um rapaz fiel a sua amada, mas um tanto bobo, e os deu junto com as pulseiras coloridas para a Moça Bonita.
Ela agradeceu
- Obrigada.
Mas disse que não podia sair com o Canalha
- Mas não posso sair com você.
Porque ele a magoaria
- Porque você me magoaria.
Sim, as palavras precisam ser repetidas. Porque o Canalha as martelou na cabeça o resto do dia.
Deixou a Moça Bonita conversando com as plantas em seu casebre vermelho e voltou para casa, consciente de que, agora sim, havia visto a mulher de sua vida (embora ele não saiba direito o que é isso e conheça apenas mulheres da vida). Caminhou ainda mais confiante, quase pedante, mas não deixava mais seu ego atrapalhar. "Ego é um animal que deve ser deixado em casa", ele ouvia de seus mestres da velha guarda.
Chegando em casa, Magau o esperava para a caça que eles haviam programado há muito. "Hoje é a desforra. Vão estar todas lá, você vai dar a volta no alfabeto e voltar esfolado para casa".
Mas o Canalha, embora achando que não, estava velho.
sexta-feira, 14 de setembro de 2007
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