quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

no nada


"Olhei para o lado da balsa onde anotava os dias e contei oito riscos. Mas me lembrei de que não tinha anotado o daquele dia. Marquei-o com as chaves, convencido de que seria o último, e senti desespero e raiva ante a certeza de que era mais difícil morrer que continuar vivendo. Nessa manhã tinha decidido entre a vida e morte. Escolhera a morte e, entretanto, continuava vivo, com o pedaço de remo na mão, disposto a continuar lutando pela vida. A continuar lutando pela única coisa que já não importava mais."

"É possível se passar um ano no mar, mas há um dia em que é impossível suportar uma hora mais."

Relato de um Náufrago - Gabriel García Márquez sem firula, seco como sal. Melhor na edição de sebo com ilustrações do Carybé

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

"história de um amor"


Trechos de Carta a D., de André Gorz, uma declaração a sua mulher, Dorine, em carta, em livro, em fim da vida:

"Procurei esse médico quando seu estado de saúde se agravou dramaticamente. Você não conseguia mais se deitar, de tanto que a cabeça a fazia sofrer. Passava a noite em pé, na varanda, ou sentada numa poltrona. Eu queria acreditar que nós tínhamos tudo em comum, mas você estava sozinha na sua aflição."



"Você acabou de fazer oitenta e dois anos. Continua bela, graciosa e desejável. Faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. Recentemente, eu me apaixonei por você mais uma vez, e sinto em mim, de novo, um vazio devorador, que só o seu corpo estreitado contra o meu pode preencher. À noite eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atrás de um carro fúnebre. Eu sou esse homem."

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

feio mas tá na moda

Do alto de uma falésia, desceu rumo à praia por uma escada íngreme de madeira. Era uma praia estreita de comprimento, mas com uma bela faixa de areia. Seu destino era a caverna semelhante a uma torre no lado direito da praia.

Entrou e começou a subir. As rochas eram todas ornamentadas com grafites de motivos de futebol, com referências a craques e campeonatos do passado. No caminho inverso, atletas altos, de uniforme azul e amarelo, desciam compenetrados. No alto da caverna, pegou o que tinha que pegar, sem saber direito o que era, e desceu de volta.

À noite, sob o galpão onde se realizava a festa do que parecia ser uma colônia de férias, o time dos atletas altos e fortes voltou, agora em grupo. Formaram um corredor no meio do galpão, à espera de seu técnico, que chegou pouco depois. Ele era negro e não era alto como seus discípulos, mas era forte e assustador. O rosto coberto de piercings na sobrancelha, um grande brinco de argola em uma orelha, e dentes enormes. Bradou as palavras de sempre de ordem, união, força, vitória, aos gritos de seus soldados.

Em seguida, o capitão do time, ao que parecia ser, cumprimenta de longe, com um aceno discreto, e inicia o que devia ser um show de demonstração/teste para a próxima leva de calouros do próximo ano. Dois meninos fortes, mas não tão altos como os veteranos, são os primeiros candidatos. Eles se amarram a cordas presas ao teto e a duas grandes portas de metal, que deveriam ser erguidas paralelamente ao solo.

Os jovens apoiam os pés na porta, perpendicularmente ao chão, e tentam começar a andar em direção ao teto com a ajuda da corda. O esforço é visivelmente marcante, com veias saltadas e rostos vermelhos e pingos de suor. Um deles não aguenta, desaba no chão e ali fica, com uma estranha pulsação na testa, um galo que inchava e desinchava, deformando seu rosto.

A cena chama atenção de todos, os moleques que soltavam gritos de provocação ao time de jovens muito mais bem nutridos que eles se calam. Um dos jogadores vai checar o que houve, quando o candidato fracassado, de repente, se transforma em um grande lobo, o suficiente para causar tumulto e acabar com a festa.

Correu, perseguiu, uivou, mas não atacou ninguém. Você consegue se desvencilhar quando ele vem em sua direção, mas o deixa chegar perto a ponto de ameaçar: não acabou aqui, guardei seu rosto, volto para te buscar.

Mais tarde, na internet, cria coragem para provocá-lo de volta: então vem.