domingo, 21 de novembro de 2010

oi de novo

Trechos de Adeus às Armas, de Ernest Hemingway. soco no coração com estilhaços de granada e paixão interrompida.

Terminadas as tarefas, sentávamo-nas na sacada do meu quarto. Eu ia para a cama e, depois que todos já estavam dormindo e tínhamos certeza de que ninguém nos viria interromper, Cat se aninhava comigo. Eu gostava de desmanchar seus cabelos; ela sentava-se na cama e ficava imóvel; então, de repente, me beijava e eu tirava-lhe os grampos e os espalhava sobre o lençol. Eu pararia para observá-la, e ela não se mexeria até eu desprender os dois últimos grampos, quando os cabelos ficariam inteiramente soltos. A seguir, enfiava a cabeça por entre eles, e ela também, e ficávamos como se dentro de uma tenda, ou como se estivéssemos por trás de uma cachoeira.

* * *
- Sim - disse eu. - O estômago não pode ganhar uma guerra, mas pode perdê-la.
- Não falo em perder. Não concordo com o que dizem por aí. O que fizemos neste verão não foi inútil.

Calei-me. Eu sempre me embaraçava com as palavras sagrado, glorioso e inútil. Nós as tínhamos escutado muitas vezes, de longe, debaixo da chuva, quando só as palavras mais gritadas eram ouvidas, e as tínhamos lido em proclamas pregados nas paredes, sobre outros proclamas. Mas não víamos nada sagrado em torno, e as coisas gloriosas não mostravam glória nenhuma. Os sacrifícios seriam como os dos matadouros de Chicago, só que lá fazem outra coisa com a carne que, aqui, enterramos. Havia muitas palavras que já não suportávamos - e por fim só os nomes dos lugares tinham dignidade. Certos números, nomes e datas eram tudo o que poderíamos pronunciar com alguma significação. Palavras abstratas, como glória, honra, coragem, sagrado, eram obscenas, ao lado dos nomes concretos das cidades e rios, dos números dos regimentos e das datas.

* * *
Aos que trazem coragem a este mundo, o mundo precisa quebrá-los, para conseguir eliminá-los, e é o que faz. O mundo os quebra, a todos; no entanto, muitos deles tornam-se mais fortes, justamente no ponto onde foram quebrados. Mas aos que não se deixam quebrar, o mundo os mata. Mata os muito bons, os muito meigos, os muito bravos - indiferentemente. Se vocês não estão em nenhuma dessas categorias, o mundo vai matar vocês, do mesmo modo. Apenas não terá pressa em fazer isso.

* * *
O garçom saiu e fechou a porta. Voltei aos jornais e à guerra nos jornais, enquanto ia lentamente despejando a soda no uísque. Ia ter de dizer a eles para não trazerem o uísque já com o gelo, no copo, pois só assim dá para ver quanto uísque é servido, e também o copo não estará cheio demais para se misturar a soda. Era o mais sensato a fazer. O bom uísque é das partes agradáveis da vida.
- Em que está pensando, querido?
- Em uísque.
- E o que pensa sobre o uísque?
- Em como é bom.
- Sei - murmurou Catherine, fazendo uma careta.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

receptáculo

Acordou de uma bebedeira. Mais uma amnésia alcoólica. Merda. Onde estava? Era um quarto de hotel. Pela janela, reconheceu os grafites, a fauna humana e a sujeira hipster da rua Augusta. Ao tentar recuperar um pouco de dignidade com a água da pia na cara, tomou um susto ao ver um corte tosco, ainda em processo de cicatrização, dando a volta na cabeça, logo abaixo da franja. Achou um pininho, desses de caixa de joia de avó, e abriu, como se não ligasse que sua cabeça, da noite para o dia, virou caixa de joia de avó.

Não havia nada. Seu cérebro havia sido removido. O crânio era um recipiente quase vazio agora.

Sem se desesperar com o absurdo, grotesco, horripilante desfecho da noite, questionou-se, com calma de coveiro em dias de chuva: por que eu mantenho as funções motoras se não tenho mais cérebro?, perguntou-se.

AO descer à rua, encontrou outros amigos de porre. Um deles passou pelo mesmo procedimento cirúrgico aparentemente não consentido. Discutiram a respeito das supostas vantagens biológicas que haviam descoberto, mas um terceiro interveio: vocês estào exercendo funções de piloto automático. Vocês mantiveram o lobo parietal, então vejam: ainda conseguem manter sensações...

Ah, cala essa boca, olha aqui, maluco, dá pra servir sopa com minha cabeça e você vem com essa aulinha de biologia!?

Mas é sério. Quando vocês precisarem pensar, ter uma ideia no trabalho, por exemplo, não vão conseguir. Vejam aquela modelo andando. Ela também teve o cérebro removido. Mas vai ter um dia a dia normal.

Hmmm

Ao chegar no trabalho, concluiu todas as tarefas sem o menor problema.

Pediu demissão no dia seguinte.