Era uma garagem subterrânea, semelhante às de shopping. Escura, empoeirada e um balcão com luz amarela baixa, mostrando aos poucos pneus empilhados e uma tevezinha antiga, 14 polegadas, pendurada em um canto alto da parede. Surpreendeu-se ao reconhecê-la na tela, participando de uma gingana de perguntas e respostas ou algo do tipo no programa do Gugu. 'Caramba, para quem disse que não se sentia bem em frente às câmeras ela está ótima. E é o terceiro programa em que ela vai em 3 semanas!', mordeu-se, inseguro.
Saiu correndo pela garagem, que era repleta de elevadores rústicos para os pedestres passarem sobre as vias dedicadas exclusivamente aos milhares de carros que por lá passavam diariamente. Eram desses elevadores de obra, cetaligado?
Começou a correr. Não a correr desesperadamente ou fugindo de algo ou querendo chegar a algo. Correr por correr porque sentia-se bem ao correr como se fosse uma criatura que não andasse mas corresse. No entanto, o trote sincopado começava a ser interferido pelo fluxo cada vez maior de transeuntes na mão contrária. Marchas de soldados, policiais, atletas, sempre na direção contrária.
O caminho que levava os pedestres para fora da garagem virava uma enorme estrutura metálica de pontes estreitas, suspensas e interligadas por escadas. Mais ou menos uma espiral cúbica de escadas de incêndio de grandes edifícios.
Foi numa dessas escadas que deu de cara com um antigo colega de faculdade, de quem não era muito amigo mas alguém longe de ser um desafeto. Cumprimentaram-se, ofegantes, ambos praticando a corridinha das escadas, mas em sentidos contrários. Sentiu-se diminuído quando foi perguntado: `Desculpa, não lembro seu nome...Não é...` `Não, esse é meu apelido`, cortou, sem graça. Despediram-se e ele voltou a se locomover.
Encontrou uma escada que subia à direita para uma casa que lhe era familiar - e que estava com sons de gente feliz. Subiu e deu de cara com uma colega que não via havia alguns meses vomitando sobre o irmão dele. Desses jatos beges, como se a boca dela tivesse sido trocada por uma mangueira de bombeiro. Ao ver a cena, ainda eufórico com a corrida, dirigiu-se à cozinha, onde uma empregada lhe apresentou diversos tipos de balde - que ela não chamava de 'balde`, por ser de algum lugar do Sul, e que não pareciam ser o que para ele eram baldes. Mas serviam para o propósito de encher de água e limpar o irmão humilhado pela tequila rebelde do estômago alheio.
Mandou que tirasse a camisa e jogou cuidadosamente água sobre o rosto dele até que estivesse suficientemente menos sujo. Feito o serviço, sentou-se e tratou de tentar se divertir com aquela reunião única de pessoas que até então não se conheciam. O som que tocava era um cd gravado por ele mesmo havia uns 2 ou 3 anos, embora não se lembrasse de ter colocado algo tão pesado com o Rob Zombie que explodia nas caixas de som. A dona da casa, ainda de luto pela morte do pai, estava a um canto, visivelmente forçada a tentar se divertir. Não queria estar ali. Ao lado dele, o colega surdo falou algo que ninguém entendera - ou que não era para ser entendido, o que foi comprovado quando ele forçara o surdo a repetir claramente o que dissera, para que todos ouvissem, o que foi só mais um momento constrangedor. Inocentemente, o surdo tentara se comunicar com os lábios com um amigo do outro lado da sala, fazendo uma fofoca sobre o antigo negócio do pai de outro ali presente, que havia falido e deixado a família endividada. Ninguém precisava ouvir isso.
E foi justamente nesse anticlímax que ele finalmente reparou que ela estava lá, sentada, divertindo-se, mexendo na mão vestida com uma luva de couro que deixava os dedos expostos. O jeito boneca roqueira dela de sempre. Só não era de sempre a proximidade que ela estava de um colega de trabalho dele, que rapidamente a envolveu com os braços apoiados no cotovelo, passando por trás da cintura e pegando a mão dela.
Foi o suficiente para ele se levantar. Quando se beijaram, a festa ainda continuava quase que normalmente, mesmo com a reação dele. `Vocês não iam me dizer? E precisava disso na minha frente?` Em meio a respostas evasivas, acabou quebrando na mão o copo americano vazio que segurava. Com o punho sangrando, saiu pela porta da frente, onde não havia mais as escadas metálicas, mas bucólicas ruas residenciais. Seu pai, preocupado, viera atrás, e lhe disse: 'vai pra casa e começa uma vida nova às 8h30`. Olhou para trás e viu, lá em cima, o irmão com uma espingarda apontada para os dois. Teve tempo apenas para dizer ao pai que se protegesse e saiu correndo.
* * *
Atendeu o telefone, pendurado na parede. Discutiu, gritou, xingou. Ao desligar o aparelho, esmurrou-o na parede até não sobrar uma peça intacta. O vizinho, ou algo semelhante a isso, soltava berros abafados pela parede. Hank xingou de volta, saiu chutando a porta.
A escada dava para um sótão trancado, de onde o tal vizinho reclamara do barulho do telefonema violento. Sujeito grande, costeletas selvagens, possivelmente um esquimó albino, escondia-se naquele buraco com uma velha misteriosa e uma pessoa quieta. Ao parar de xingar Hank, voltou-se para a velha, que conseguira uma presa em sua arapuca. Uma galinha lutava desesperada para soltar a cabeça das tábuas de madeira que faziam as vezes de parede e portão para eles, e por através de suas frestas entrava a pouquíssima luz de que essas estranhas pessoas dispunham (talvez era o necessário para eles, seu aspecto indicava que sim).
`Temos jantar para hoje`, disse a velha ao quebrar o pescoço da ave.
* * *
De volta ao trabalho, narrou aos amigos a cena que tivera que presenciar na véspera. "Talvez você tenha se exaltado à toa. Eles estavam encenando, é possível por isso, isso e isso", ouviu. "Mas eles fizeram aquilo, aquilo e aquilo", retrucou. "Mas tudo se encaixa. Você pode estar errado."
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
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sonhos bizarros
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