terça-feira, 4 de março de 2008

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“Florentino Ariza, endurecido de tanto sofrer, assistia aos preparativos da viagem como um morto teria assistido às disposições tomadas para suas exéquias. Não disse a ninguém que ia embora, não se despediu de ninguém, no mesmo hermetismo férreo que só à mãe revelou o segredo de sua paixão reprimida, mas na véspera da viagem cometeu consciente uma loucura do coração que bem poderia ter-lhe custado a vida. Vestiu à meia-noite seu traje de domingo e tocou em solo debaixo do balcão de Fermina Daza a valsa de amor que compusera para ela, que só eles dois conheciam, e que foi durante três anos o emblema de sua cumplicidade contrariada. Tocou-a murmurando a letra, o violino banhado em lágrimas, e com uma inspiração tão intensa que aos primeiros compassos começaram a ladrar os cachorros da rua, e em seguida os da cidade, mas depois se foram calando pouco a pouco graças ao feitiço da música, e a valsa terminou em meio a um silêncio sobrenatural. O balcão não se abriu, nem ninguém assomou à rua, nem mesmo o guarda-noturno que quase sempre acudia com sua lanterna para ver se colhia algum benefício com as sobras das serenatas. O ato foi uma invocação de alívio para Florentino Ariza, pois quando guardou o violino na caixa e se afastou pelas ruas mortas sem olhar para trás já não achava que ia embora na manhã seguinte, e sim que tinha ido embora há muitos anos com a disposição inabalável de não voltar nunca mais.”

Um comentário:

s. disse...

demorei uns anos pra conseguir ler esse livro de cabo a rabo. não era uma leitura para adolescentes...