segunda-feira, 24 de março de 2008

digressão


A felicidade é uma sensação?

Coincidências vindas do céu sempre me chamaram a atenção, especialmente as meteorológicas. Hoje cedo, quando descia a rua dos Pinheiros e me embrenhava no mosaico de DVDs piratas, fumaça de ônibus, trombadas de pedestres e lojas de umbanda do largo da Batata, a caminho do trabalho, pensei há quanto tempo eu não me divertia numa chuva feliz. O tempo estava nublado, o calor de março, que parece ter o auge no verão a beira do fim, deu uma trégua, e eu senti falta de andar como criança debaixo de um toró bom, desses que a toalha, depois do banho, é quase abraço de mãe, não de um simples e óbvio pedaço de pano felpudo escrito algo como Karsten. Quase 12 horas depois, assisto ao trecho mais famoso de Cantando na Chuva, embalado e refrescado por uma versão cantada por Jamie Cullum – sujeito que à época do filme não era nem previsto, como lembrou o Sérgio.

E aqui estou tendo que responder essa pergunta. A felicidade é uma sensação? Não sei. Sei que é humanamente impossível não esboçar um mínimo sorriso com essa cena. Quem está feliz se vê dançando na calçada. Quem está feliz e é realista se vê dançando em meio a lixo boiando, sem ligar para a ameaça de enchente. Quem está feliz e sabe rir de si mesmo se vê dançando e imagina como ficar em pé com tantas estripulias e tanta tanta água. Difícil, então você cai, ri, levanta e, na primeira pirueta do guarda-chuva, espatifa um vaso. Quem está melancólico quer se inspirar e resgatar aquele velho sorriso automático, sem esforço. Quem vive dentro de uma concha e assiste a isso quer sair, pular sem medo. Quem tem a frieza de um atirador de elite, a rigidez do marechal prussiano, o equilíbrio laranja de um lama, certamente esboça uma sensaçãozinha, por mais que seja somente naquele instante mínimo e quase invisível que eles têm para ser só eles. Felicidade é sensação única porque cada um a manifesta e absorve de um jeito.

Estava chovendo meia hora atrás. Tinha cara de chuva feliz. Tinha consistência e volume certos – nada da garoa insossa que não molha mas deixa resfriado, muito menos de uma tromba d’água vertical. A chuva parou, voltei para a sala de aula. No caminho para casa, outra coincidência: o iPod cantarola Raul Seixas: “Eu perdi o meu medo, meu medo, meu medo da chuva”.

Um comentário:

Anônimo disse...

É uma fatia desse mesmo bolo, talvez.

Dia-a-dia, permita-se pequenas saborosas loucuras.

...Delicie, porque tem gosto muito bom (mesmo). E pode chamar de felicidade, banho-de-chuva e o que mais quiser.

Algo disso que pensava dias aí. Pra mim.