segunda-feira, 5 de setembro de 2011

ela sabe das coisas

a noite estava agitada na grande metrópole. crianças de olhos brilhantes e edultos de sorrisos de infância ouviam admirados o discurso da velha, alardeado por telões espalhados por entre os arranha-céus. ela era a colunista mais famosa da cidade, uma cronista ácida e bem-humorada, mas que parecia finalmente ter encontrado o caminho certo a seguir com seus textos. empolgava e estava mais empolgada do que nunca. e seus filhos e netos, que dirigiam a revista para a qual ela escrevia, sentiam isso.

no prédio de onde eclodia a mensagem em altíssimo som aos cidadãos, o espectro da velha iluminava todo o quarteirão, para a alegria do neto mais novo, que sabia que nunca antes uma revista ganhara publicidade gratuita de tal proporção. afinal de conta não se tratava de uma ação de marketing. a própria imagem da velha fazia brilhar a vizinhança e sua voz se espalhava pelos telões graças a tecnologias piratas de admiradores que trabalhavam na rede de comunicação eletrônica pública.

era emocionante. a cidade vivia um momento ímpar. celebridades faziam reinterpretações da Constituição e expunham em grandes placas no pé do prédio de onde o eco da velha discursava. naquele dia, o texto era assinado pelo rapper marshall matters, que chamou atenção de políticos que passavam ali enquanto faziam uma reunião andando de patins e terno entre as pessoas.

quando a velha parou de falar e disse “sempre cuidarei de vocês”, o neto sabia que era uma nítida mensagem direta à família, embora o texto dela fosse tão universalmente zeloso que toda a cidade se sentiu abraçada por seu espírito crítico e luminoso. terminado o discurso, o espectro de luz subiu rapidamente o prédio, como uma enorme e rápida centopeia, curvando-se ao passar pelo relevo de sacadas e janelas e vigas e adornos do edifício. chegando ao topo, a luz emoldurou-se na réplica diminuída da estátua da liberdade que havia lá em cima. a cidade inteira brilhou por um instante. todos ficaram em êxtase. estavam bem.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

vodca salva

trechos de O Assassinato e Outras Histórias, de Anton Tchekhov. Delicado, melancólico e bruto para mostrar o dia a dia dos russos simples de cem anos atrás, distantes da aristocracia da cidade grande

"E, fatigado com sua felicidade, pegou no sono logo em seguida e ficou sorrindo até de manhã." (O Professor de Letras)

"O que acontecia na aldeia lhe parecia detestável e a fazia sofrer. No dia de Santo Elias, beberam; na Assunção, beberam; no Dia da Exaltação da Cruz, beberam. Na festa do manto da Virgem, era feriado paroquial em Jukovo e por esse motivo os mujiques beberam durante três dias; consumiram em bebida 50 rublos do fundo comunal e depois ainda foram em todas as casas pedir dinheiro para comprar vodca." (Os Mujiques)

"Da noite para o dia, tudo se acalmou. Quando se levantaram e olharam pela janela, os salgueiros desfolhados, com os galhos ligeiramente curvados para baixo, mantinham-se absolutamente imóveis, o tempo estava nublado, sereno, como se a natureza agora estivesse envergonhada de sua orgia, das loucuras da noite e das liberdades que havia concedido às suas paixões." (Em Serviço)

"Um touro pardo mugiu, regozijando-se com a liberdade, e escavou a terra com as patas da frente. Em toda parte, acima e abaixo, as cotovias cantavam. Anissim voltou o olhar para a igreja, de formas harmoniosas, toda caiada - haviam acabado de caiar de novo o prédio -, e lembrou que, cinco dias antes, rezara ali; olhou para trás e viu a escola, com o seu telhado verde, junto ao riacho, onde tempos atrás ele tomava banho e pescava com linha, e a alegria fez tremer seu peito, Anissim desejou que de repente subisse da terra um muro e não o deixasse ir adiante, para que ele ficasse apenas com seu passado." (No Fundo do Barranco)

terça-feira, 2 de agosto de 2011

horizonte


era um deserto. quente, árido. como um deserto. mas estava pior. ventos criavam redemoinhos de fogo, que batiam e se espalhavam pela areia escaldante. no horizonte, dezenas, centenas de sobrados brancos e suntuosas janelas esverdeadas se misturavam e derretiam vertiginosamente com o ar superquente.

os prédios erguiam-se sobre um assentamento de refugiados palestinos. bem, podiam não ser palestinos. mas definitivamente eram refugiados.

o guia explicava o esquema sórdido das construções: "a ideia é fazer as casas para substituir os assentamentos. com a 'boa causa', supervalorizam o preço delas, só para depois derrubar e levantar tudo de novo, cobrando ainda mais dos financiadores. é o que chamamos aqui de bolha troll".

o deserto continuou queimando longe. e perto.

sábado, 25 de junho de 2011

Brasil, literatura, século 20

Trechos de Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. Moleques de academia, fantasias e futilidades de carnaval, dependência e exploração no trabalho, sexo fácil, sujo e desesperado, o apego ao lar e o fascínio da maquiagem são atemporais.


Eu estava trepidante, com uma ânsia de acanalhar-me, quase mórbida. Nada de raparigas do galarim perfumadas e por demais conhecidas, nada do contato familiar, mas o deboche anônimo, o deboche ritual de chegar, pegar, acabar, continuar. Era ignóbil. Felizmente muita gente sofre do mesmo mal no carnaval.
O Bebê de Tarlatana Rosa - João do Rio (1910)

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre nem triste, não era nada, era uma galinha.
Uma Galinha - Clarice Lispector (1960)

Depois chegaram os alunos. Primeiro chegou um que queria ficar forte porque tinha espinhas no rosto e voz fina, depois chegou um que queria ficar forte para bater nos outros, mas esse não ia bater em ninguém, pois um dia foi chamado para uma decisão e medrou; e chegaram os que gostam de olhar no espelho o tempo todo e usar camisa de manga curta apertada pro braço parecer mais forte; e chegaram os garotos de calças Lee, cujo objetivo, cujo objetivo é desfilar na praia; e chegaram os que só vêm no verão, perto do carnaval, e fazem uma série violentar para inchar rápido e eles vestirem suas fantasias de sarong, grego, qualquer coisa que ponha a musculatura à mostra.
A Força Humana - Rubem Fonseca (1965)

Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.
O corpo era um monte de rugas sorridentes.
O Arquivo - Victor Giudice (1972)

Não sabia mais deitar-se e dormir. Ficou quieto, tentando esquecer, sem pensar. Deflagrada, a insônia recusava-se a apagar dentro dele a sua luz amarela. Desejo de absorver-se, reorganizar-se, pedaço por pedaço. Membro por membro. Reintegrar-se. Esquecer-se para dormir.
O Elo Partido - Otto Lara Resende (1975)

A gorda foi tirando a roupa de pé na cama, eu com medo do estrado da cama quebrar e ela ali tirando tudo e dando uns pulinhos. Era gorda mas muito equilibrada, pra tirar a calcinha ficou num pé só, depois só no outro, e vi que tinha cabelo vermelho em cima e embaixo. Ficou de sutiã preto, um sutiã miudinho e apertado demais, tanto que, quando tirou, a peitaria pareceu pular pra fora. Aí ela deu uma volta completa, rodando o corpo, meio sem graça, querendo mostrar que era gorda mesmo e não tinha vergonha de ser gorda. Depois me encarou de novo, abriu as pernas e perguntou se eu achava gorda demais, respondi que ela valia quanto pesava, e também fiquei de pé na cama, já quase sem roupa.

Então a dona me amarra e desaba comigo, o estrado rebentou e ela me apertando no meio das pernas e dizendo magrelinho, magrelinho; e eu perdido no meio daquela imensidão; até que ela sentou em cima de mim no mesmo instante em que bateram na porta: - hora de zarpar, peão!
A Maior Ponte do Mundo - Domingos Pellegrini (1977)

E foi água que jorrou da porca. Água de fonte, vermelha, impetuosa, que fugiu de dentro do corpo, que saltou ao sol, que cabriolou, que explodiu na cara de todos... que sujou de sangue (agora era sangue) o braço da mãe, o rosto da mãe, o peito da mãe... que se esparramou no chapéu velho do pai, que respingou em seus bigodes... que cegou o vizinho, sufocou o empregado... foi aspirado por bocas, nariz, escorreu por pescoços e ombros.
A Porca - Tânia Jamardo Faillace (1978)

Inclusive, toda hora ainda tenho que suportar ouvir conselhos: se eu fosse Deus, eu fazia isto, se eu fosse Deus eu fazia aquilo. Deus não existe porque essa injustiça e essa outra e eu planejava isso tudo muito melhor e por aí vai. Agora, você veja que quem fala assim é um pessoal que não acerta nem a resolver um problema de uma tabela de campeonato, eu sei porque estou cansado de escutar rezas de futebol.
O Santo que não Acreditava em Deus - João Ubaldo Ribeiro (1981)

Ela apreciava tanto a casa prestes a adormecer.
Intimidade - Edla van Steen (1984)

Mas eu a observava pintar-se dentro do banheiro, encostado à parede uma displicência fingida escondendo a tensão perturbadora. Atento, acompanhava o pó lhe cobrindo o rosto, o ruge tornando humano o tom só declarado em pétalas.
Olho - Myriam Campello (1998)

E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele?
Conto de Verão n.2: Bandeira Branca - Luis Fernando Veríssimo (1999)

quinta-feira, 2 de junho de 2011

ó, vida


Trechos do visceral e melancólico Misto-Quente, de Charles Bukowski:

"Eu gostava dos sons das teclas, principalmente os das mais agudas, que quase não tinham som nenhum - pareciam cubos de gelo se chocando uns contra os outros."

"Lá fora, através da janela dos fundos, eu podia ver as rosas do meu pai crescendo. Elas eram vermelhas e brancas e amarelas, grandes e viçosas. O sol já ia baixo, mas ainda não havia se posto, e seus últimos raios penetravam ainda pela janela. Tive a impressão de que até mesmo o sol pertencia a meu pai, que eu não tinha nenhum direito sobre ele porque iluminava a casa do meu pai. Eu era como suas rosas, algo que pertencia a ele e não a mim..."

"Por volta dos 25 anos, a maioria das pessoas estava liquidada. Uma maldita nação inteira de desgraçados dirigindo carros, comendo, tendo bebês, fazendo todas as coisas da pior maneira possível, como votar em candidatos à presidência que os fizessem lembrar de si mesmos."

"À medida que meus olhos foram se ajustando, me dei conta do homem parado alguns metros à minha frente. Metade de sua orelha esquerda tinha sido arrancada em algum lugar do passado. Ele era alto, um homem muito magro com as pupilas cinzentas do tamanho de uma cabeça de agulha, centradas em uns olhos inexpressivos. Um homem muito alto e magro, ainda que, logo acima do cinto, encobrindo a fivela - subitamente -, caísse-lhe uma barriga triste e estranha e horrenda. Toda sua gordura se concentrara ali, deixando o resto de seu corpo descarnado."

"Que tempos penosos foram aqueles anos - ter o desejo e a necessidade de viver, mas não a habilidade."

" - Qual desses cursos fodidos é o mais fácil de se fazer? - perguntei-lhe.
- Jornalismo. Esses sujeitos especializados em jornalismo não fazem nada.
- Beleza, serei jornalista.
Dei uma olhada no folheto da escola.
- O que é esse Dia da Orientação de que eles falam aqui?
- Oh, esquece isso, é pura merda.
- Obrigado, parceiro. Em vez de perdermos nosso tempo com isso, vamos até o bar do outro lado do campus tomar duas geladas.
- Mas que beleza!
- É."

quinta-feira, 12 de maio de 2011

selvagem

caminhavam cada vez mais profundo na mata, até que apareceu, mansa mas ameaçadora, uma onça. era linda, o pelo de um dourado fosco, esbelta, jovem. aproximou-se dele. 'ela te quer', disse o outro. 'agora doma pra dormir`.

Não deu outra. Chegou perto, cada vez mais, os caninos cada vez mais ameaçadores. mas era incrivelmente dócil. encaixou o focinho no rosto dele e desabou seu corpo. dormiu, mansa, linda. entregou-se, domada.

só quando ele acordou reconheceu o corpo perfeito da mulher dos sonhos por baixo daqueles pelos dourados foscos.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

pá-pum

- e em qual lado do rio você vai ficar?
- no meu.

segunda-feira, 21 de março de 2011

no meio do nada, tudo

(imagem do More than a Brand)

trechos do implacável e lírico livro de aventureiros e exploradores apaixonados por contar histórias O Coração das Trevas, de Joseph Conrad

(...) uma caminhada casual ou uma bebedeira casual em terra lhe basta para desvendar todo o segredo de todo um continente e, em geral, o segredo lhe parece inútil. As histórias de marinheiros têm uma singeleza direta, e todo seu significado cabe numa casca de noz. Mas Marlow não era típico (exceto em seu gosto de contar patranhas), e para ele o significado de um episódio não estava dentro, como um caroço, mas fora, envolvendo o relato que o revelava como o brilho revela um nevoeiro, como um desses halos indistintos que se tornam visíveis pelo clarão espectral do luar.

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A algaravia de gritos belicosos e enfurecidos cessou no mesmo instante, e das profundezas da selva emergiu um gemido de pavor lamurioso e desespero absoluto como o que acompanharia a perda da derradeira esperança sobre a Terra.

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Parecia um arlequim. Sua roupa era feita de algum tecido de linho cru acastanhado, provavelmente, mas estava toda coberta de remendos, remendos vistosos, azuis, vermelhos e amarelos - remendos nas costas, remendos na frente, remendos nos cotovelos, nos joelhos; debrum colorido rodeando sua jaqueta, debrum escarlate na base de sua calça; e a luz do sol lhe dava uma aparência muito alegre e maravilhosamente limpa, porque era possível notar o cuidado com que aqueles remendos todos haviam sido aplicados. Um rosto infantil e imberbe, muito franco, sem características marcantes, nariz descascando, pequenos olhos azuis, sorrisos e carrancas afugentando-se naquele semblante aberto como o sol e sombra numa planície varrida pelo vento.

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Ela caminhou diretamente para o vapor, parou e nos encarou. Sua sombra comprida se projetava sobre a beira da água. Seu rosto tinha um aspecto trágico e feroz de sofrimento selvagem e dor surda mesclado com o temor de uma resolução meio formada, indefinida. Ela ficou parada, olhando para nós sem um movimento, com o ar de quem está meditando sobre algum fim inescrutável. Um minuto inteiro decorreu e então ela deu um passo à frente. Houve um reitnir fraco, um cintilar de metal amarelo, uma ondulação das roupas franjadas, e ela parou como se o coração lhe houvesse falhado. O rapaz ao meu lado resmungou. Os peregrinos murmuraram às minhas costas. Ela olhava para todos nós como se a sua vida dependesse da inabalável firmeza de seu olhar. De repente, abriu os braços nus e os ergueu, rígidos, acima da cabeça, como que tomada por um desejo irreprimível de tocar o céu, e ao mesmo tempo as sombras ligeiras dispararam pelo chão, varreram o rio e envolveram o vapor num abraço irreal. Um silêncio formidável pairava sobre a cena.

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Ocorreu então uma mudança em suas feições diferente de tudo o que eu já vira e que espero nunca mais ver. Não, eu não estava comovido. Estava fascinado. Era como se um véu fosse rasgado. VI naquele rosto de marfim a expressão de orgulho sombrio, de poder implacável, de terror covarde - de um intenso e inelutável desespero. Estaria elerevivendo a sua vida em cada detalhe de desejo, tentação e rendição naquele momento supremo de compreensão absoluta? Ele gritou num sussurro para alguma imagem, alguma visão - gritou duas vezes, um grito que não era mais que um sopro: 'O horror! O horror'.

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Para ela, ele havia morrido apenas ontem. E, caramba!, a impressão foi tão poderosa que também para mim ele parecia ter morrido apenas no dia anterior - melhor, naquele exato instante. Vi no mesmo tempo ela e ele - a morte dele e o sofrimento dela -, vi o sofrimento dela no momento exato da morte dele. Vocês compreendem? Eu os vi juntos - os ouvi juntos.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

UFC do buquê

Era uma mesa redonda de festa de casamento das mais inesperadas das mesas redondas de festa de casamento. Do seu lado, Victor Belfort, ainda abalado pela derrota acachapante que acabara de sofrer. "Temi pelo meu queixo, cara. Os médicos estão vendo ainda se ele não virou uma gelatina", desabafa, enquanto convidados do outro lado de mesa tiravam fotos dele sem cerimônia alguma.

Anderson, o homem que o derrotara, chegou em seguida, sem camisa, exibindo músculos e tatuagens, posando para fotos e, surpreendentemente, sorrindo e integrando-se à conversa. Apesar de rivais no octógono, eram grandes amigos. Após a tietagem, relaxam, fazem piadas com você, tiram fotos.

Sobre a mesa, o menu da festa, totalmente estilizado com motivos de Super Mario. A Ellen é fã, queria um casamento de videogame. E foi uma diversão só. Além da luta em que o próprio noivo levou uma surra, o grande salão imitando um cassino tinha muitas outras opções de lazer. No menu, podia-se ler algumas delas: "mande torpedos bêbados e veja no que dá!", entre outras.

Uma pena, não deu para aproveitar tudo. Era hora de ir embora. Os leitores da revista escolhidos para participar dessa folia de joysticks e MMA precisavam partir, e você, embora amigo dos famosos, tinha que acompanhá-los.

A vida é uma festa, a vida é trabalho e, nos bons momentos, é tudo junto.

Tudo junto.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

casas

Sonho muito com casas. Muitos sonhos se passam em casas. As que existiram na minha vida, como o Cambaco, em Tatuí, e as que ainda existem como as antigas dos meus avós em São Sebastião. Raramente sonho com a casa onde moro ou as onde morei. Quando elas surgem, estão reformadas, deformadas. E sonho, com uma frequência discreta, que cruza épocas na minha vida, com casas criadas no subconsciente. Todas labirínticas e enormes.

Há a mansão estranha adaptada à topografia de morro de videogame, toda cercada por um filete de rio que, se não serviria na função primordial de defesa de castelo, era um divertido corredor para pessoas e patos de borracha circularem entre os cômodos.

Há o monumental e lúgubre palacete cafona do bairro, cheio de salas escuras e uma piscina vazia de 50 metros de profundidade. Apesar do aspecto cinzento, sempre tem alguma celebração lá. Um aniversário, cheio de balões coloridos, crianças correndo, pipoca, futebol de sabão (às vezes na piscina gigante) e carrossel.

Há algumas outras, inclusive uma vila inteira de criaturas pequenas e simpáticas, mistura de Smurfs e um videogame antigo, Lemmings, que eu visitava muito na infância. Eu era grande.

E há a suntuosa casa de praia comumente alugada pelos amigos no verão. Sempre à espera do fim da reforma, com lascas de cimento e cômodos inteiros sem acabamento. Mas, na última visita, ela estava impecável, do ponto de vista de engenharia (quanto a arquitetura e decoração, outra história). A casa estava pronta. E a festa, começando.

O presidente de facto e o sem-teto


Os nossos amigos seguiram seu caminho sinuoso pelas multidões sobre a ponte. Essa estrutura, que existia há 600 anos e fora uma via pública barulhenta e populosa durante todo esse tempo, era um caso curioso, pois uma fileira bem compacta de armazéns e lojas, com os alojamentos da família na parte de cima, estendia-se ao longo de seus dois lados, de uma margem do rio à outra. A Ponte era uma espécie de cidade para si mesma: tinha a sua estalagem, suas cervejarias, suas padarias, suas lojas de miudezas, seus mercados de alimentos, suas indústrias manufatureiras e até sua igreja.

Olhava as duas vizinhas por ela ligadas - Londres e Southwark - como sendo bastante boas como subúrbios, mas do contrário não particularmente importantes. Era uma corporação fechada, por assim dizer, uma cidade estreita, de uma única rua, com um terço de quilômetro de comprimento. Sua população não passava de uma população de vila, e todo mundo ali conhecia todos seus concidadãos intimamente, e conhecera seus pais e mães antes deles - e ainda todos os seus pequenos casos familiares.

Tinha a sua aristocracia, claro - suas excelentes famílias antigas de açougueiros, padeiros e não sei o que mais, que vinham ocupando os mesmos antigos recintos por 500 ou 600 anos e conheciam a grande história da Ponte desde o início, e todas as suas estranhas lendas; e sempre tratavam comversas da ponte, refletiam pensamentos da Ponte, e mentiam de um modo longo, uniforme, direto, substancial, típico da Ponte. Era exatamente o tipo de população para ser estreita, ignorante e pretensiosa. As crianças nasciam na Ponte, eram ali criadas, cresciam, viviam até a velhice e finalmente morriam sem jamais pisarem em nenhuma outra parte do mundo a não ser na Ponte de Londres.

* * *

- Black Bess, a sua rapariga, ainda está conosco, mas ausente na marcha para o leste. Uma moça excelente, de boas maneiras e conduta ordeira, ninguém jamais a viu bêbada mais de quatro dias na semana.

(...)
- Mais algum de nossos amigos teve destino duro?
- Alguns sim. Particularmente os novatos...como pequenos agricultores que se tornaram inúteis e famintos no mundo porque suas fazendas lhes foram tiradas para serem transformadas em pastos de ovelhas.

Trechos do leve, divertido e ironicamente atual O Príncipe e o Mendigo, de Mark Twain

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Selvagens


"Eu queria conseguir umas batinas", sugeri. "Podem ser úteis em Las Vegas."

Mas nenhuma loja de trajes religiosos estava aberta. Também não estávamos dispostos a arrombar uma igreja. "ah, deixa pra lá", falou meu advogado. "É bom lembrar que certos policiais são católicos muito carolas. Dá pra imaginar o que esses filhos-da-puta fariam se nos pegassem totalmente drogados e bêbados, usando batinas roubadas? Jesus, a gente ia ser castrado!"

"Tem razão", concordei. "E, pelo amor de Jesus Cristo, larga esse cachimbo quando a gente parar no sinal. Não esquece que estamos num conversível".

Meu advogado balançou a cabeça. "A gente precisa de um narguilé bem grande. Pra deixar aqui embaixo, fora de vista. Se alguém vir, vai achar que estamos usando oxigênio."

* * *
Mas nada na atmosfera do North Star indicava uma necessidade de ficar alerta. A garçonete possuía certa hostilidade passiva, mas com isso eu estava acostumado. Era uma mulher grande. Não gorda, mas larga em todos os sentidos, com braços compridos e musculosos e uma mandíbula de gente briguenta. Uma caricatura destruída de Jane Russell: cabeçona com cabelos escuros, batom borrado e peitos enormes que devem ter sido espetaculares uns vinte anos atrás, quando ela foi a Mama dos Hell's Angels em Berdoo... Mas agora estavam embalados num sutiã elástico gigante e cor-de-rosa, que por baixo do seu uniforme de raiom branco e suado parecia uma atadura.

Devia ser casada, mas eu não estava com vontade de especular. Naquela noite, tudo que eu queria dela era uma xícara de café preto e um hambúrguer de 29 centavos com picles e cebola. Nenhum aborrecimento, nenhuma conversa - apenas um lugar para descansar e recuperar forças. Eu nem estava com fome.

Meu advogado não tinha um jornal ou qualquer outra coisa para prender a atenção. Assim, para espantar o tédio, se concentrou na garçonete. Ela anotava nossos pedidos como um robô quando meu advogado destruiu sua pose exigindo "dois copos de água gelada - com gelo".

Foda-se, pensei. Eu estava lendo as tirinhas.

* * *
... Por que se dar ao trabalho de ler jornais, se isso é tudo que têm a oferecer? Agnew tinha razão. A imprensa é uma gangue de covardes impiedosos. Jornalismo não é uma profissão, não é nem mesmo um ofício. É uma saída barata para vagabundos e desajustados - uma porta falsa que leva à parte dos fundos da vida, um buraquinho imundo e cheio de mijo, fechado com tábuas pelo inspetor de segurança, mas fundo o bastante para comportar um bêbado deitado que fica olhando para a calçada se masturbando como um chimpanzé numa jaula de zoológico.


Trechos de Medo e Delírio em Las Vegas, o relato chapado de Hunther S. Thompson na decadência da sociedade americana pós-sonho hippie. As ilustrações igualmente insanas do livro são de Ralph Steadman

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

no nada


"Olhei para o lado da balsa onde anotava os dias e contei oito riscos. Mas me lembrei de que não tinha anotado o daquele dia. Marquei-o com as chaves, convencido de que seria o último, e senti desespero e raiva ante a certeza de que era mais difícil morrer que continuar vivendo. Nessa manhã tinha decidido entre a vida e morte. Escolhera a morte e, entretanto, continuava vivo, com o pedaço de remo na mão, disposto a continuar lutando pela vida. A continuar lutando pela única coisa que já não importava mais."

"É possível se passar um ano no mar, mas há um dia em que é impossível suportar uma hora mais."

Relato de um Náufrago - Gabriel García Márquez sem firula, seco como sal. Melhor na edição de sebo com ilustrações do Carybé

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

"história de um amor"


Trechos de Carta a D., de André Gorz, uma declaração a sua mulher, Dorine, em carta, em livro, em fim da vida:

"Procurei esse médico quando seu estado de saúde se agravou dramaticamente. Você não conseguia mais se deitar, de tanto que a cabeça a fazia sofrer. Passava a noite em pé, na varanda, ou sentada numa poltrona. Eu queria acreditar que nós tínhamos tudo em comum, mas você estava sozinha na sua aflição."



"Você acabou de fazer oitenta e dois anos. Continua bela, graciosa e desejável. Faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. Recentemente, eu me apaixonei por você mais uma vez, e sinto em mim, de novo, um vazio devorador, que só o seu corpo estreitado contra o meu pode preencher. À noite eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atrás de um carro fúnebre. Eu sou esse homem."

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

feio mas tá na moda

Do alto de uma falésia, desceu rumo à praia por uma escada íngreme de madeira. Era uma praia estreita de comprimento, mas com uma bela faixa de areia. Seu destino era a caverna semelhante a uma torre no lado direito da praia.

Entrou e começou a subir. As rochas eram todas ornamentadas com grafites de motivos de futebol, com referências a craques e campeonatos do passado. No caminho inverso, atletas altos, de uniforme azul e amarelo, desciam compenetrados. No alto da caverna, pegou o que tinha que pegar, sem saber direito o que era, e desceu de volta.

À noite, sob o galpão onde se realizava a festa do que parecia ser uma colônia de férias, o time dos atletas altos e fortes voltou, agora em grupo. Formaram um corredor no meio do galpão, à espera de seu técnico, que chegou pouco depois. Ele era negro e não era alto como seus discípulos, mas era forte e assustador. O rosto coberto de piercings na sobrancelha, um grande brinco de argola em uma orelha, e dentes enormes. Bradou as palavras de sempre de ordem, união, força, vitória, aos gritos de seus soldados.

Em seguida, o capitão do time, ao que parecia ser, cumprimenta de longe, com um aceno discreto, e inicia o que devia ser um show de demonstração/teste para a próxima leva de calouros do próximo ano. Dois meninos fortes, mas não tão altos como os veteranos, são os primeiros candidatos. Eles se amarram a cordas presas ao teto e a duas grandes portas de metal, que deveriam ser erguidas paralelamente ao solo.

Os jovens apoiam os pés na porta, perpendicularmente ao chão, e tentam começar a andar em direção ao teto com a ajuda da corda. O esforço é visivelmente marcante, com veias saltadas e rostos vermelhos e pingos de suor. Um deles não aguenta, desaba no chão e ali fica, com uma estranha pulsação na testa, um galo que inchava e desinchava, deformando seu rosto.

A cena chama atenção de todos, os moleques que soltavam gritos de provocação ao time de jovens muito mais bem nutridos que eles se calam. Um dos jogadores vai checar o que houve, quando o candidato fracassado, de repente, se transforma em um grande lobo, o suficiente para causar tumulto e acabar com a festa.

Correu, perseguiu, uivou, mas não atacou ninguém. Você consegue se desvencilhar quando ele vem em sua direção, mas o deixa chegar perto a ponto de ameaçar: não acabou aqui, guardei seu rosto, volto para te buscar.

Mais tarde, na internet, cria coragem para provocá-lo de volta: então vem.