terça-feira, 22 de setembro de 2009

ano da Índia

"Esta é uma tradição antiga e venerada pelo povo do meu país: começar uma história fazendo uma oração ao Poder Superior.
Imagino que Vossa Excelência também comece puxando o saco de alguma divindade. Mas de que divindade? As possibilidades são tantas...
Veja só: os muçulmanos têm um deus.
Os cristãos têm três.
E nós, os hindus, temos 36.000.000.
O que dá um total de 36.000.004 sacos divinos para Vossa Excelência e eu escolhermos.
(...)
Portanto, estou fechando os olhos, juntando as mãos num reverente namastê e pedindo aos deuses que lancem alguma luz sobre minha história sombria. Tenha um pouco de paciência, Mr, Jiabao. Isso pode demorar um bocado.
Quanto tempo Vossa Excelência acha que levaria para puxar 36.000.004 sacos?"


"O corpo de um homem rico é como um travesseiro de algodão de primeiríssima: branco, macio e sem marcas. O nosso é diferente. A coluna do meu pai era uma corda cheia de nós, daquele tipo que as mulheres usam, nas aldeias, para tirar água do poço; os ombros encurvados ao redor do pescoço, formando um relevo que parecia até uma coleira de cachorro; cortes, talhos e cicatrizes, como chicotadas em sua pele, percorriam seu peito e todo o seu torso, descendo até os quadris e a bunda. A história da vida de um pobre é escrita na sua pele, com uma caneta de ponta bem afiada."


"Isso é bem estranho: mate um homem e vai se sentir responsável pela vida dele - vai ficar até possessivo. Acabamos sabendo mais a seu respeito do que os seus próprios pais; estes conheceram o seu feto, mas nós conhecemos o seu cadáver. Somos os únicos a poder completar a história de sua vida; os únicos a saber por que o seu corpo foi levado ao fogo antes da hora, e por que os seus dedos dos pés se encolheram, lutando por mais uma hora na terra."


" - Pinky, isso era em Nova York. Não dá para dirigir na Índia; veja só esse trânsito... Ninguém obedece a qualquer regra, as pessoas atravessam feito loucas pelo meio da rua, olhe só... Veja isso...
Um trator vinha a toda pela estrada, soltando uma belíssima nuvem de fumaça de diesel pelo cano de descarga.
- E está na contramão! O motorista nem percebeu isso!
Eu também não tinha percebido. Bom, supostamente, devemos dirigir pela esquerda, mas, até então, nunca tinha visto ninguém tão aflito por causa dessa regra."


"Mr. Jiabao,

Quando Vossa Excelência chegar aqui, vão lhe dizer que os indianos inventaram tudo, da internet aos ovos cozidos e às naves espaciais, antes que os britânicos viessem roubar isso de nós.
Besteira. A coisa mais importante que se inventou neste país, nos seus dez mil anos de história, foi a Gaiola dos Galos.
Vá à velha Déli, atrás da mesquita de Jama Masjid, para ver como as aves são exibidas no mercado. São centenas de galinhas pálidas e galos de cores brilhantes, todos enfurnados em gaiolas de tela de arame, apertados ali dentro como vermes numa barriga, bicando uns aos outros, cagando uns nos outros, brigando só para arranjar um espaço para respirar. A gaiola tem um fedor impressionante, um fedor de carne emplumada e apavorada. Num balcão de madeira, por cima dessa gaiola, fica um jovem açougueiro sorridente, exibindo a carne e os órgãos de uma galinha recém-abatida, tudo ainda reluzente sob uma camada de sangue escuro. Os galos que estão na gaiola sentem o cheiro de sangue que vem do alto. Veem os órgãos dos irmãos ao seu redor. Sabem que serão os próximos. Mesmo assim, não se rebelam. Não tentam escapar dessa gaiola.
É exatamente a mesma coisa que se faz com os seres humanos neste país."



Do ótimo O Tigre Branco, de Aravind Adiga

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