Trechos de Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. Moleques de academia, fantasias e futilidades de carnaval, dependência e exploração no trabalho, sexo fácil, sujo e desesperado, o apego ao lar e o fascínio da maquiagem são atemporais.
Eu estava trepidante, com uma ânsia de acanalhar-me, quase mórbida. Nada de raparigas do galarim perfumadas e por demais conhecidas, nada do contato familiar, mas o deboche anônimo, o deboche ritual de chegar, pegar, acabar, continuar. Era ignóbil. Felizmente muita gente sofre do mesmo mal no carnaval.
O Bebê de Tarlatana Rosa - João do Rio (1910)
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre nem triste, não era nada, era uma galinha.
Uma Galinha - Clarice Lispector (1960)
Depois chegaram os alunos. Primeiro chegou um que queria ficar forte porque tinha espinhas no rosto e voz fina, depois chegou um que queria ficar forte para bater nos outros, mas esse não ia bater em ninguém, pois um dia foi chamado para uma decisão e medrou; e chegaram os que gostam de olhar no espelho o tempo todo e usar camisa de manga curta apertada pro braço parecer mais forte; e chegaram os garotos de calças Lee, cujo objetivo, cujo objetivo é desfilar na praia; e chegaram os que só vêm no verão, perto do carnaval, e fazem uma série violentar para inchar rápido e eles vestirem suas fantasias de sarong, grego, qualquer coisa que ponha a musculatura à mostra.
A Força Humana - Rubem Fonseca (1965)
Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.
O corpo era um monte de rugas sorridentes.
O Arquivo - Victor Giudice (1972)
Não sabia mais deitar-se e dormir. Ficou quieto, tentando esquecer, sem pensar. Deflagrada, a insônia recusava-se a apagar dentro dele a sua luz amarela. Desejo de absorver-se, reorganizar-se, pedaço por pedaço. Membro por membro. Reintegrar-se. Esquecer-se para dormir.
O Elo Partido - Otto Lara Resende (1975)
A gorda foi tirando a roupa de pé na cama, eu com medo do estrado da cama quebrar e ela ali tirando tudo e dando uns pulinhos. Era gorda mas muito equilibrada, pra tirar a calcinha ficou num pé só, depois só no outro, e vi que tinha cabelo vermelho em cima e embaixo. Ficou de sutiã preto, um sutiã miudinho e apertado demais, tanto que, quando tirou, a peitaria pareceu pular pra fora. Aí ela deu uma volta completa, rodando o corpo, meio sem graça, querendo mostrar que era gorda mesmo e não tinha vergonha de ser gorda. Depois me encarou de novo, abriu as pernas e perguntou se eu achava gorda demais, respondi que ela valia quanto pesava, e também fiquei de pé na cama, já quase sem roupa.
Então a dona me amarra e desaba comigo, o estrado rebentou e ela me apertando no meio das pernas e dizendo magrelinho, magrelinho; e eu perdido no meio daquela imensidão; até que ela sentou em cima de mim no mesmo instante em que bateram na porta: - hora de zarpar, peão!
A Maior Ponte do Mundo - Domingos Pellegrini (1977)
E foi água que jorrou da porca. Água de fonte, vermelha, impetuosa, que fugiu de dentro do corpo, que saltou ao sol, que cabriolou, que explodiu na cara de todos... que sujou de sangue (agora era sangue) o braço da mãe, o rosto da mãe, o peito da mãe... que se esparramou no chapéu velho do pai, que respingou em seus bigodes... que cegou o vizinho, sufocou o empregado... foi aspirado por bocas, nariz, escorreu por pescoços e ombros.
A Porca - Tânia Jamardo Faillace (1978)
Inclusive, toda hora ainda tenho que suportar ouvir conselhos: se eu fosse Deus, eu fazia isto, se eu fosse Deus eu fazia aquilo. Deus não existe porque essa injustiça e essa outra e eu planejava isso tudo muito melhor e por aí vai. Agora, você veja que quem fala assim é um pessoal que não acerta nem a resolver um problema de uma tabela de campeonato, eu sei porque estou cansado de escutar rezas de futebol.
O Santo que não Acreditava em Deus - João Ubaldo Ribeiro (1981)
Ela apreciava tanto a casa prestes a adormecer.
Intimidade - Edla van Steen (1984)
Mas eu a observava pintar-se dentro do banheiro, encostado à parede uma displicência fingida escondendo a tensão perturbadora. Atento, acompanhava o pó lhe cobrindo o rosto, o ruge tornando humano o tom só declarado em pétalas.
Olho - Myriam Campello (1998)
E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele?
Conto de Verão n.2: Bandeira Branca - Luis Fernando Veríssimo (1999)
sábado, 25 de junho de 2011
Brasil, literatura, século 20
quinta-feira, 2 de junho de 2011
ó, vida
Trechos do visceral e melancólico Misto-Quente, de Charles Bukowski:
"Eu gostava dos sons das teclas, principalmente os das mais agudas, que quase não tinham som nenhum - pareciam cubos de gelo se chocando uns contra os outros."
"Lá fora, através da janela dos fundos, eu podia ver as rosas do meu pai crescendo. Elas eram vermelhas e brancas e amarelas, grandes e viçosas. O sol já ia baixo, mas ainda não havia se posto, e seus últimos raios penetravam ainda pela janela. Tive a impressão de que até mesmo o sol pertencia a meu pai, que eu não tinha nenhum direito sobre ele porque iluminava a casa do meu pai. Eu era como suas rosas, algo que pertencia a ele e não a mim..."
"Por volta dos 25 anos, a maioria das pessoas estava liquidada. Uma maldita nação inteira de desgraçados dirigindo carros, comendo, tendo bebês, fazendo todas as coisas da pior maneira possível, como votar em candidatos à presidência que os fizessem lembrar de si mesmos."
"À medida que meus olhos foram se ajustando, me dei conta do homem parado alguns metros à minha frente. Metade de sua orelha esquerda tinha sido arrancada em algum lugar do passado. Ele era alto, um homem muito magro com as pupilas cinzentas do tamanho de uma cabeça de agulha, centradas em uns olhos inexpressivos. Um homem muito alto e magro, ainda que, logo acima do cinto, encobrindo a fivela - subitamente -, caísse-lhe uma barriga triste e estranha e horrenda. Toda sua gordura se concentrara ali, deixando o resto de seu corpo descarnado."
"Que tempos penosos foram aqueles anos - ter o desejo e a necessidade de viver, mas não a habilidade."
" - Qual desses cursos fodidos é o mais fácil de se fazer? - perguntei-lhe.
- Jornalismo. Esses sujeitos especializados em jornalismo não fazem nada.
- Beleza, serei jornalista.
Dei uma olhada no folheto da escola.
- O que é esse Dia da Orientação de que eles falam aqui?
- Oh, esquece isso, é pura merda.
- Obrigado, parceiro. Em vez de perdermos nosso tempo com isso, vamos até o bar do outro lado do campus tomar duas geladas.
- Mas que beleza!
- É."