(imagem do More than a Brand)
trechos do implacável e lírico livro de aventureiros e exploradores apaixonados por contar histórias O Coração das Trevas, de Joseph Conrad
(...) uma caminhada casual ou uma bebedeira casual em terra lhe basta para desvendar todo o segredo de todo um continente e, em geral, o segredo lhe parece inútil. As histórias de marinheiros têm uma singeleza direta, e todo seu significado cabe numa casca de noz. Mas Marlow não era típico (exceto em seu gosto de contar patranhas), e para ele o significado de um episódio não estava dentro, como um caroço, mas fora, envolvendo o relato que o revelava como o brilho revela um nevoeiro, como um desses halos indistintos que se tornam visíveis pelo clarão espectral do luar.
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A algaravia de gritos belicosos e enfurecidos cessou no mesmo instante, e das profundezas da selva emergiu um gemido de pavor lamurioso e desespero absoluto como o que acompanharia a perda da derradeira esperança sobre a Terra.
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Parecia um arlequim. Sua roupa era feita de algum tecido de linho cru acastanhado, provavelmente, mas estava toda coberta de remendos, remendos vistosos, azuis, vermelhos e amarelos - remendos nas costas, remendos na frente, remendos nos cotovelos, nos joelhos; debrum colorido rodeando sua jaqueta, debrum escarlate na base de sua calça; e a luz do sol lhe dava uma aparência muito alegre e maravilhosamente limpa, porque era possível notar o cuidado com que aqueles remendos todos haviam sido aplicados. Um rosto infantil e imberbe, muito franco, sem características marcantes, nariz descascando, pequenos olhos azuis, sorrisos e carrancas afugentando-se naquele semblante aberto como o sol e sombra numa planície varrida pelo vento.
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Ela caminhou diretamente para o vapor, parou e nos encarou. Sua sombra comprida se projetava sobre a beira da água. Seu rosto tinha um aspecto trágico e feroz de sofrimento selvagem e dor surda mesclado com o temor de uma resolução meio formada, indefinida. Ela ficou parada, olhando para nós sem um movimento, com o ar de quem está meditando sobre algum fim inescrutável. Um minuto inteiro decorreu e então ela deu um passo à frente. Houve um reitnir fraco, um cintilar de metal amarelo, uma ondulação das roupas franjadas, e ela parou como se o coração lhe houvesse falhado. O rapaz ao meu lado resmungou. Os peregrinos murmuraram às minhas costas. Ela olhava para todos nós como se a sua vida dependesse da inabalável firmeza de seu olhar. De repente, abriu os braços nus e os ergueu, rígidos, acima da cabeça, como que tomada por um desejo irreprimível de tocar o céu, e ao mesmo tempo as sombras ligeiras dispararam pelo chão, varreram o rio e envolveram o vapor num abraço irreal. Um silêncio formidável pairava sobre a cena.
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Ocorreu então uma mudança em suas feições diferente de tudo o que eu já vira e que espero nunca mais ver. Não, eu não estava comovido. Estava fascinado. Era como se um véu fosse rasgado. VI naquele rosto de marfim a expressão de orgulho sombrio, de poder implacável, de terror covarde - de um intenso e inelutável desespero. Estaria elerevivendo a sua vida em cada detalhe de desejo, tentação e rendição naquele momento supremo de compreensão absoluta? Ele gritou num sussurro para alguma imagem, alguma visão - gritou duas vezes, um grito que não era mais que um sopro: 'O horror! O horror'.
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Para ela, ele havia morrido apenas ontem. E, caramba!, a impressão foi tão poderosa que também para mim ele parecia ter morrido apenas no dia anterior - melhor, naquele exato instante. Vi no mesmo tempo ela e ele - a morte dele e o sofrimento dela -, vi o sofrimento dela no momento exato da morte dele. Vocês compreendem? Eu os vi juntos - os ouvi juntos.
segunda-feira, 21 de março de 2011
no meio do nada, tudo
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